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Mostrando postagens de 2019

Por quem os sinos dobram? Não por Katellen ou Ágatha

Mais uma criança muito pequena morre no Rio de Janeiro. Mais uma menininha negra. Bala perdida, diz a reportagem. Bala perdida, expressão que não faz nenhum sentido. Uma bala que mata não é perdida. Bala que mata cumpre sua missão. Partamos daqui, dessa observação banal ou, antes, implicante. Como se houvesse aí um problema de semântica, ou de semiótica. Porque não. Ou não apenas. A ideia de uma bala perdida é a ideia de um acidente. De alguém que estava naquela esquina da história que conhecemos como estar no lugar errado, na hora errada. Ora, nada é menos acidental que uma criança de 5 anos estar ao lado da mãe indo para a escola. Mesmo que seja em Realengo. Mesmo que seja em 2019, no estado governado por Witzel, no país governado por Bolsonaro. Simplesmente não é possível aceitar que a sexta criança morta no Rio de Janeiro neste ano seja mais um acidente. Na mesma ocasião outra criança morreu. Esta tem 17. Mas essa não merece manchete nem está nesta estatística. M

Sobre heróis e cidadãos: o holocausto brasileiro

A degradação do meio ambiente no Brasil faz parte de seu modelo de desenvolvimento. Nas últimas décadas, a exploração selvagem  de minérios, o agronegócio com sua voracidade por novas fronteiras agrícolas, aliada à monocultura, o uso praticamente exclusivo de meios de transporte baseados em carros e caminhões, a condenação de extensas áreas florestais alagadas por usinas hidroelétricas etc. são signos inequívocos disso. Sucessivos governos usaram o capital ambiental brasileiro como se este fosse infinito.    Ao que parece, a conta dessa política predatória está chegando. E justamente no momento em que a preservação do meio ambiente se torna um valor universal, em face das evidências de que a vida tal qual a conhecemos neste planeta está em risco. É o pior cenário possível para o país. Tornar-se um vilão internacional, caminhando a passos largos para se tornar um pária.  No Brasil, que assiste impassível à destruição de seus direitos previdenciários e trabalhistas, o holocausto amb

As palavras e as coisas

Neste país de pouco apreço pelo estudo, pela reflexão, pela compreensão, as palavras têm valor de verdade. Se repetidas à exaustão criam "verdades", cada vez mais difíceis de serem refutadas. Alguns por aí, bem mais espertos que nós, descobriram isso e estão criando uma realidade paralela e nos aprisionando nela. Vejam a inteligência dos nomes que escolhem para suas bandeiras: Movimento Brasil Livre, Escola sem Partido. Ou para seus inimigos: Ideologia de gênero, feminazi. Quem pode ser contra que o Brasil seja livre? Quem pode advogar a ideia de que as escolas devem ter "partido"? Que melhor estratégia de desqualificar a urgente questão da desigualdade entre homens e mulheres que chamá-la "ideologia". Ou associar o feminismo ao nazismo? Ao invés de enfrentarmos os monstros reais estamos nos tornando fadados a lutar contra moinhos de vento. Ao invés de falarmos de desigualdade de gênero temos de convencer antes que não se trata de uma "ideologia"

Os imbecis e a internet

Tenho lido com frequência a afirmação de que essa imbecilidade e truculência que a gente vê nas redes sociais e nos comentários nos portais de notícias sempre existiram e que a internet só as colocaram na vitrine. Tipo não criou, propagou apenas. Pois eu estou na contramão. Penso que a visibilidade que a internet e, em particular, as redes sociais dão a esse tipo de comportamento cria sim esses comportamentos. Na exata medida em que os sancionam não apenas como algo natural  e aceitável mas como algo elogiável, algo a ser seguido. Essas pessoas que tinham essas opiniões, esses pensamentos mas os guardavam no fundo da sua alma ou no máximo os externavam aos familiares e amigos próximos se sentem agora legitimados, se sentem verdadeiros líderes, ou pelo menos membros da comunidade da gente de bem e dos defensores da família e dos valores cristãos. Isso não apenas engrossa a corrente como radicaliza posições. A publicidade, a sanção social do like, o número de amigos e seguidores que comp

A apatia

Muitos de nós temos nos perguntado pelos motivos da apatia política que se abateu sobre nós. Há as hipóteses de cunho psicológico (estamos cansados ou envergonhados). Eu tento outras explicações. Minha hipótese é que a população mais pobre raramente se mobiliza em grandes manifestações de massa no Brasil. São tão achacados, são tão humilhados, são tão destituídos de direitos que não confiam nesse instrumento para melhorar suas vidas. Desconfiam (com razão) do Estado, dos políticos, das lideranças sociais ou sindicais. Preferem acreditar que o próprio esforço os salvará, oxalá com a ajuda de deus e da igreja.  Outro extrato social recentemente bastante mobilizado, a classe média de direita que saiu às ruas envergando orgulhosa a camisa da CBF e bateu panela nas varandas país afora, só se mobiliza com temas de apelo moral. Assim foi em 1964 e em 2013/2015. Seu mote é sempre pelo fim da corrupção e "pela família". Ela se mobiliza quando sente medo e/ou se sente particularmente

A sala de jantar

Excursionando virtualmente dentro das casas e apartamentos da classe média alta curitibana (estou procurando outro lugar pra morar) percebi que estes dizem muito dos seus proprietários enquanto agrupamento social (pra não dizer classe). Sua tosquice política é só uma pequena parte do conjunto da obra. A noção do que é de bom gosto, chique é bastante limitada e controversa.  a) Todos os imóveis têm sancas de gesso. O must é o teto rebaixado com iluminação embutida. Quanto mai s curva e rebuscada essas sancas forem, mais chique é. Mesmo em cômodos de 10 m2, o que os torna claustrofóbicos (de onde sai essa referência destas malditas sancas, está nas novelas?) b) pisos de porcelanato bege é outra unanimidade. Ou pisos laminados que imitam madeira. Preferem retirar pisos originais de parquet para substituir por esses laminados ou porcelanatos. Creio que porque estes são homogêneos e teoricamente não riscam. O legal é ter um apartamento de 10 anos com cara de que saiu ontem da construtora,

Dependência de empregada

Dias destes vi um filme bem interessante. Histórias cruzadas (The help). É sobre uma jornalista branca do Mississípi que, nos anos 60, resolve escrever um livro sobre as empregadas domésticas e babás negras e suas relações com as famílias brancas para as quais trabalham. O ponto culminante de várias tensões que costuram a trama é a questão do banheiro das empregadas. Uma das mulheres da comunidade branca apresenta ao governador a proposta de tornar obrigatório um banheiro ex clusivo dentro das casas para as empregadas negras. Há imediato entusiasmo e adesão à ideia. Os banheiros são fora ou em anexos da casa. Em casas suntuosas, de várias dezenas e mesmo centenas de metros quadrados, os banheiros são pequenos, improvisados, sem acabamentos. A justificativa pública é a de as mulheres vão se sentir mais à vontade em seus próprios banheiros. A privada é que "essa gente" tem muitas doenças e representa ameaças à saúde das famílias. Uma forma de resistência persistente à luta pelo

No coração do mundo e do Brasil

Em 2000, Sérgio Bianchi lançou Cronicamente inviável. Era uma hipérbole do pior da sociedade brasileira. Ali via-se as relações violentas de classe, de raça, de gênero; o cinismo e a hipocrisia da classe média; a destruição ambiental; a corrosão moral de todos os personagens; a indústria cultural como mediadora da repressão política e social; o arrivismo dos pobres. Não há clemência para ninguém. Não chega a ser um grande filme, mas é um ícone cinematográfico no registro da miséria brasileira. Outro filme importante que retrata o pior do Brasil é “Baixio das bestas” de 2007. O filme de Cláudio Assis é também avassalador ao expor a violência como eixo principal das relações sociais. No caso, o filme foca principalmente na questão da violência sexual contra meninas e mulheres, as relações de subserviência entre a elite e os pobres, o embrutecimento de todos. Desde a paisagem até as pessoas, tudo é bestializado. Quando a tela é tomada pelo vermelho do fogo nos canaviais, o expe

Para olhar o demônio nos olhos

Nesta semana houve uma sensação compartilhada de que Bolsonaro atravessou mais uma vez o ponto da saturação. Muita coisa que tem dito e feito nos últimos 7 meses é insuportável, é inaceitável, é inacreditável. Mas ele segue impávido, colosso na sua estupidez e na sua determinação de mostrar sem pudor sua face ignóbil: o monte Everest da sua monstruosidade repetida a cada dia, camada após camada, seu esforço de nos levar a todos para sua latrina mental e moral. Ele aposta no efeito “entorpecimento” coletivo, na normalização do absurdo. Como se, pela repetição, a capacidade de indignação e a força que ela pode carregar se esvaísse em estupefação. Lobotomizadas por doses diárias do hediondo, as pessoas adoecem ou se fecham em suas vidas privadas e preferem não saber, tanto quanto possível. Eu penso que essas formas de reação podem realizar entre nós um tipo de distopia imaginada apenas no terreno da ficção. Um país gigantesco com uma população enorme de zumbis, incapazes

O desastre

Estou tentando fazer uma lista dos retrocessos, absurdos e atrocidades praticadas por este governo. já que 6 entre 10 brasileiros não conseguem apontar uma medida positiva dele. São: - liberalidade na posse e porte de armas - incentivo ao desmatamento - ataques à demarcação de terras indígena - liberação de quase duas centenas de novos agrotóxicos - incentivo à irreponsabilidade e à impunidade no trânsito - cortes nos recursos da educação, na ciência e na tecnologia - venda de patrimônio publico a preço de banana, vide Embraer e BR Distribuidora - corte na distribuição de medicamentos - fim presumido da aposentadoria - patrimonialismo na gestão do Estado, como indicação de filho desqualificado como embaixador nos EUA - Ataques às instituiçõess mais importantes do pais, como a Fiocruz, o INPE, o IBGE, ao Itamaraty, à ANCINE, a SBPC - ataques às universidades - fechamento da participação da sociedade civil na gestão pública co

Qual Brasil está acima de tudo?

Acabo de ler Quarto de despejo de Carolina Maria de Jesus. Para quem não conhece, ela é uma escritora negra que, na época em que escreveu o livro, vivia numa favela à beira do Rio Tietê em São Paulo. Era meados dos anos de 1950, e era o Brasil de Adhemar de Barros e Jucelino Kubitschek. O livro é construído como um diário. Sua força narrativa vem da crueza das descrições e da repetição de uma rotina dura. Todos os dias sair do seu barraco e ir em busca de papel ou ferro, afim de vendê-los e alimentar seus 3 filhos. Ela caminha por horas e volta pra casa com poucos cruzeiros com os quais compra pão, açucar, café. Na favela, enfrenta a violência diária dos homens que batem em suas mulheres, a hostilidade destas com uma mulher negra que cria sozinha seus filhos e escreve todos os dias e ainda luta para proteger seus filhos da marginalidade que os ronda. É uma batalha diária pela sobrevivência mas o principal adversário é a fome. Todos os dias são incertos e a possibilidade de não consegui

Mentira e estupidez

O texto ( https://www.huffpostbrasil.com/entry/bolsonaro-mentiras_br_5d34f39de4b0419fd32ea882 ) aponta dois fenômenos distintos. Apesar de não marcar essa distinção, eu saliento. A mentira é método de governo e isso vai ao encontro de um fenômeno social mais amplo. É como se tivéssemos chegado a um modelo de sociedade que caminha a passos largos para o autoritarismo, a barbárie e a manipulação mais grosseira e elegemos um governo que nos empurra ainda mais nessa direção. Numa metáfora, um carro desgovernado rumando ao abismo e o governo um caminhão que dá aquel a força para o abismo chegar mais rápido. Ao contrário de alguns que pensam numa concertação do mal por trás das ações do governo Bolsonaro, um grande cérebro pensando e realizando técnicas de diversionismo para nos enganar e nos distrair, penso antes numa sintonia entre eles e estes novos tempos. Claro que há defesa de interesses e tudo o mais, mas os tempos são de idiotas e, sermos governados por idiotas, não no sentido de fal

A Reforma da Previdência e a esquerda

Quando o governo Temer destruiu parte considerável da CLT e com ela proteções mínimas para os trabalhadores, a esquerda brasileira, as centrais sindicais etc. pouco mais fizeram que choramingar nas redes sociais.  As manifestações de rua contra a Reforma da Previdência foram pífias e a oposição não conseguiu sequer articular um discurso contra a reforma que fizesse sentido para a população. Vamos combinar que se opor ao discurso messiânico e simplista de que só a Reforma da  Previdência iria salvar o Brasil não é tão complicado assim. A maior parte das pessoas não irá se aposentar mais. É simples assim. Terão de morrer trabalhando. Trabalhando onde? Onde tem trabalho para pessoas com mais de 60 anos no Brasil? Nem vou discutir que não havia um projeto alternativo. O Fernando Haddad, que teria a obrigação moral de liderar a oposição, ou pelo menos tentar fazê-lo, quase sequer mencionou a reforma da previdência em suas redes sociais. Achou melhor tretar no Twitter segundo a agenda do dia

Fim da previdência social

Os principais disparates da reforma (texto base aprovado hoje) só pra começar: 1- o tempo minimo de contribuição sobre de 15 anos para 20 anos. Hoje cerca de metade dos trabalhadores brasileiros consegue comprovar em média apenas cerca de 5 meses de contribuição por ano. Significa que esses trabalhadores vão precisar de 48 anos de trabalho para atingir o tempo mínimo e ainda assim obter apenas 60% do benefício. As mulheres serão as mais atingidas, apesar de sua dupla ou tripla jornada e do enorme e pesado trabalho doméstico não remunerado. 2 - As pensões por morte vão diminuir, podendo ser menores que um salário mínimo. 3 - fim do abono salarial; 4 - trabalhos insalubres deixarão de ter regra especial. 5- fim da maior parte das garantias para os trabalhadores ruriais. Em suma, na prática, a aposentaria acaba no Brasl.  Apenas funcionáros públicos e empregados super especializados vão desfutar dela. Num cenário de envelhecimento acelerado da população do país, é um quadro apocaliptico. 

O ódio retratado

Ontem maratonei pela história recente do Brasil narrada em dois documentários. A democracia em vertigem de Petra Costa (Netflix) e El odio (Youtube) do uruguaio Andrés Sal-Iari.  Fiquei pensando em como pacatos cidadãos de meia idade, educação formal e estabilidade financeira se transformaram em cães raivosos, fanatizados, destituídos de qualquer sombra de reflexão. Qual foi a alquimia responsável por condensar medo e ódio transformando-os em energia política de destruição. Tu do o que possamos dizer sobre a manipulação evidente da Lavajato e da mídia, sobre os oportunistas políticos etc. não passa nem perto de uma explicação para o aparecimento dessa matilha que depois se transformou num exército de cabos eleitorais de Bolsonaro. Não foram os únicos, mas certamente foram os mais atuantes. Vendo tudo em retrospecto, é tão claro que não poderia dar em outra coisa que na eleição de um ser tão ignóbil como o presidente e sua camarilha de seres rastejantes. Não há outro projeto possivel qu

Rio menos lindo

O Rio de Janeiro saiu um pouco mais destruído ontem. De uma chuva. Não uma bomba, de uma terremoto, de um ciclone mas de uma chuva. O mesmo aconteceu em São Paulo há cerca de um mês. Chuvas fortes, fenômeno recorrente em um país tropical, estão matando às dezenas. Tem também as repetidas chacinas, os "incidentes" com moradores de periferia, os milhares assassinados todos os anos, as barragens que se rompem, os incêndios em acampamentos de times milionários. Não são apenas os  direitos sociais e políticos que estão sendo ameaçados, a vida é cada vez menos valiosa neste país. Todos ou quase, somos apenas números que, eventualmente tocados pela tragédia do nosso tempo, podem aparecer no noticiário por alguns segundos. Se aparecer, porque a maioria dos mortos não ganha nem isso. Mortos às dezenas, às centenas, aos milhares. Por descaso, por embrutecimento dos padrões civilizatórios, por selvageria. Os jacarés soltos em um bairro do Rio desde ontem são uma metáfora da selva de hor

Olavo, os militares e os Bolsonaro: o circo nosso de cada dia

Tive a paciência e o estômago para ver a entrevista que Olavo de Carvalho deu a Pedro Bial. Praticamente minha estreia com ele. Nesta, até pousou de razoável comparado às escatologias que povoam suas postagens nas redes sociais. Aliás, coisa fácil diante do entrevistador chapa branca que não fez outra coisa que deixá-lo à vontade, reverenciando-o. É vaidoso, mas é principalmente alguém que convence os outros daquilo em que nem ele acredita. Ele está ali só surfando numa onda internacional de recrudescimento de ideias fascistas. Essa onda provavelmente ganhou o mundo a partir da guerra da Bósnia, em 1992. Mas se proclama filósofo, disse que escreve livros pros próximos séculos, milênios até. Um Aristóteles. Ele não me convenceu de que está convencido disso. Pelo contrário, me pareceu que ele sabe bem que é uma fraude. É louco mas não rasga dinheiro. Suspeito que nasça daí, além da necessidade de pagar as contas, a lógica de fundar uma seita, os olavetes. Mas que seita seria essa? Cla

A ultra-direita

Eu estou bem incomodada com o que tenho lido sobre o "protesto a favor" de ontem. Essa ênfase no tamanho deste em comparação com o outro está me parecendo reducionista. Fica parecendo que a questão é simplesmente ver quem consegue por mais gente na rua.  Trazendo pra cá um dito popular de outro contexto, tamanho não é documento. Tanto que ambos os lados festejam os resultados.  O fato que me parece mais relevante é que cidadãos escolarizados e de alta renda (em sua maioria, s egundo pesquisas realizadas) tomaram gosto em se reunir com a sua galera, sair pelo rolê dominical, donos de uma expressiva superioridade moral suposta a demonstrar seu apreço pelo presidente e pelos ministros de estimação. Isso num contexto em que o dito presidente não tomou uma única medida para conter a clara decadência econômica, cultural, educacional do país que eles dizem defender. Num contexto em que os laços deste com as milícias e com velhíssimas práticas da corrupção dos gabinetes de políticos

As políticas de morte

As políticas de morte de Bolsonaro ganharam um novo capítulo: liberar geral no trânsito. No trânsito. Aquele mesmo que já mata cerca de 40.000 pessoas por ano e deixa um número incalculado de sequelados.  Já tinha liberado geral nas armas. No país que mata mais de 60.000 por ano, destas 73% por arma de fogo.  Já tinha liberado quase 200 venenos agro em 5 meses. Já tinha proposto licença pra policial matar.  Tem gente falando em prioridades. Que o governo não sabe escolher prioridades. Claro que sabe. TODAS as ações são de morte ou de terra arrasada.

O cidadão de bem e o cidadão de mal

Estava eu aqui pensando em como não consigo me enquadrar na ideia do cidadão de bem. Não que tenha tentado muito, mas agora tantas coisas só lhe são reservadas que às vezes dá uma vontadinha de dar uma espiada no lado de lá do muro. Parece que são muito respeitáveis, em seus carros caros e suas casas empetecadas. Cidadãos de bem de estirpe, com gravata e capital. Morando bem, quem sabe até candidato a malandro federal; ops, deputado federal (data vênia, Chico!) Porque todos sabem que a categoria cidadão de bem cabe a quem pode pagar por uma arma e pelo processo de seu registro. E pode pagar por um cofre. E pode pagar por um curso de tiro. Ou seja, quem tem pelo menos R$ 10.000,00 livre de qualquer outra urgência da vida. Aos demais, somos todos um tanto suspeitos. Se é pobre e entra num shopping fino, deve estar querendo roubar; ou exercer a inveja ou a ganância, pecados mortais. Se mora numa periferia e é preto, será o primeiro a ser parado pela polícia e revistado. Mesmo com uni

Aux armes, citoyens!

Cada governo escolhe um rosto pra chamar de seu. Foi assim com a estabilização da moeda no de FHC e o Bolsa Família no de Lula. Dilma não conseguiu imprimir uma marca à sua gestão. É sintomático inclusive a mudança no slogan do primeiro para o segundo mandato (de “País rico é país sem miséria” para “Patria educadora”). Bolsonaro, por sua vez, parece não ter dúvidas quanto ao seu. Depois de medidas que alteraram a configuração dos ministérios, a primeira ação concreta anunciada, no ínício da segunda quinzena do novo governo foi o decreto que facilita o acesso à posse de armas de fogo. Poderia ser algo para simplificar a abertura de novas empresas. Poderia ser a desoneração de algum tributo. Poderia ser alguma medida para ampliar o controle sobre os gastos públicos e o fomento da transparência. Eu, que nem sou muito imaginativa, poderia fabular umas vinte medidas que poderiam ser tomadas via decreto presidencial que iriam ao encontro daquele que se convencionou chamar de anseio do ele

Democracia arcaica

No século XIX, ainda durante Império, o Brasil possuía um sistema representativo bastante restrito. Para votar, o cidadão precisava comprovar certa renda anual. Além disso, mulheres, escravos, analfabetos e pobres não votavam. O fim do voto censitário e o fim do regime escravocrata ampliaram a representação ainda no século XIX, mas o voto das mulheres só aconteceu na década de 30 do século XX e o voto dos analfabetos só foi alcançado em 1985, no fim do Regime Militar. Esses momentos foram fundamentais para o alargamento das bases democráticas do nosso regime. Esse processo implicou uma intensa disputa. Se considerarmos apenas o voto dos analfabetos, este ainda hoje é criticado por uma parte de nossa elite, que confunde convenientemente escolaridade com capacidade de discernimento dos próprios interesses e dos interesses públicos, fundamentos da decisão eleitoral. Ou seja, a depender desta, pessoas com baixa escolaridade continuariam alijadas do processo político. Mesmo sen

Como e por quê criar um espantalho

Depois da ditadura militar, que acabou em 1985 e entregou um Brasil endividado, estagnado e com inflação nas alturas, a direita brasileira se encolheu e se camuflou. Até 10 anos atrás, nenhum partido político se autodenominava “de direita”. No máximo havia os “de centro” como o PFL (antes PDS, depois Democratas) mais conservadores, ou os liberais. como o PL e o PTB. Ninguém ou quase ousava se anunciar de direita. No final do primeiro governo Lula isso começou a mudar. O chamado escândalo do mensalão fez certas forças políticas perceberem que havia uma brecha para reverter a hegemonia que a centro esquerda havia alcançado no Brasil desde o governo de Itamar Franco (vamos aqui conceder que o governo de FHC não foi direita, apesar de tudo). Mas como aproveitar essa brecha? O discurso contra a corrupção é um cavalo selado que passeia na história política brasileira há décadas. Serviu para minar Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, serviu ao PT que esbravejava contra os escândalos

Entre o kit gay e o desemprego à espreita

As últimas eleições presidenciais nos deixaram um legado de explicações a serem encontradas e de paradigmas consagrados derrubados. Para ilustrar estes últimos, por exemplo a ideia de que sem tempo de TV nenhum candidato iria longe. Por exemplo a ideia de que partido pequeno e sem estrutura nacional não teria futuro eleitoral em eleições majoritárias. E ainda a ideia de que o par PT x PSDB, hegemônico nos últimos 24 anos, ainda não seria superado. A eleição de Bolsonaro colocou, portanto, alguns cânones da ciência política brasileira de cabeça pra baixo. Um dos enigmas mais intrigantes entretanto é por que e como em meio a uma crise econômica de grandes proporções, com altas taxas de desemprego, perda de poder aquisitivo, endividamento das famílias etc. ou seja, premências urgentes do mundo real, questões aparentemente marginais como “kit gay”, “ideologia de gênero” e ameaça “comunista” puderam se tornar determinantes. Levaremos anos compreendendo esse fenômeno raro de ali