Entre o kit gay e o desemprego à espreita


As últimas eleições presidenciais nos deixaram um legado de explicações a serem encontradas
e de paradigmas consagrados derrubados. Para ilustrar estes últimos, por exemplo a ideia de
que sem tempo de TV nenhum candidato iria longe. Por exemplo a ideia de que partido
pequeno e sem estrutura nacional não teria futuro eleitoral em eleições majoritárias. E ainda a
ideia de que o par PT x PSDB, hegemônico nos últimos 24 anos, ainda não seria superado. A
eleição de Bolsonaro colocou, portanto, alguns cânones da ciência política brasileira de
cabeça pra baixo.
Um dos enigmas mais intrigantes entretanto é por que e como em meio a uma crise econômica
de grandes proporções, com altas taxas de desemprego, perda de poder aquisitivo,
endividamento das famílias etc. ou seja, premências urgentes do mundo real, questões
aparentemente marginais como “kit gay”, “ideologia de gênero” e ameaça “comunista” puderam
se tornar determinantes.
Levaremos anos compreendendo esse fenômeno raro de alinhamento de astros que nos
conduziu ao transe coletivo que acomete uma grande parte dos brasileiros. Não tenho aqui a
pretensão de responder a essas perguntas, mas apenas explorar uma pista.
A primeira coisa a ser considerada é que o PT já vinha encurralado por denúncias de corrupção
desde o chamado Mensalão, há pelo menos 13 anos. Mais recentemente, a mídia hegemônica
e a Operação Lava Jato conseguiram emplacar a pauta diária da corrupção desde as Jornadas
de Junho de 2013. Há pelo menos 5 anos, portanto, este tema foi dominante na vida pública do
país. O agravamento da crise econômica a partir de 2015 pintou um quadro de um partido
incompetente para gerir a crise, além de corrupto.
A insistência do PT na candidatura de Lula e sua recusa em sequer tentar construir uma
grande frente de centro esquerda com outro nome ou partido à frente favoreceu que o tema da
corrupção não perdesse força no debate eleitoral. Aliado a isso, o espraiamento das denúncias
contra integrantes importantes de outros partidos e a derrocada do governo Temer dizimou o
que se convencionou chamar de direita tradicional, representada pelo PSDB e MDB
principalmente, e abriu espaço para o crescimento exponencial da extrema-direita.
A extrema-direita começou a ganhar espaço e visibilidade no Brasil principalmente a partir das
manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff, em 2015. Bradando por intervenção
militar, revisionismo histórico acerca do golpe de 1964, inclusive fazendo apologia à tortura e
ao assassinato de opositores, atacando professores com a miragem da “ideologia de gênero” e
feministas como “feminazis”, entre outras coisas, viu seu prestígio crescer à medida que suas
posições foram encampadas como bandeiras de campanha por Jair Bolsonaro. Ou seja, o que
parecia impensável aconteceu. Ideias entre alucinadas e grotescas saíram das sombras das
redes sociais e ganharam status de plano de governo.
Por outro lado, o projeto econômico de Bolsonaro permaneceu convenientemente obscuro. Sua
deliberada estratégia de não debater questões econômicas, manteve afastados temas que
seriam polêmicos para o eleitorado, tais como a reforma da previdência, a privatização da
Pretrobrás ou da Caixa Econômica e do Banco do Brasil, a redução dos direitos trabalhistas
etc. Tampouco se conhece seus projetos para as áreas de educação, saúde e segurança, além
da populista autorização para porte de arma. O estilo de campanha, feita praticamente apenas
pelas redes sociais e sem debate com os demais candidatos propiciou que Bolsonaro
escolhesse o campo da disputa.
E o campo escolhido foi claramente o do pânico moral. Quando se centra uma campanha
eleitoral nos temas da defesa da família e da pátria, o não dito é que estamos em perigo. Muito
perigo. A família em risco de dissolução pelas ditaduras “gayzista e feminista”. A pátria em
risco pela ameaça comunista (ilustrada pelo caos crescente na Venezuela). Mais uma vez

vimos o clamor para reunir as famílias com Deus pela liberdade e propriedade.
O PT, representado por seu candidato, Fernando Haddad, por outro lado, centrou suas
principais baterias na defesa da democracia. Sem espaço e tempo (em função inclusive da
redução do tempo de campanha) para mostrar as fragilidades de Jair Bolsonaro, pouco mais
fez que se defender das acusações de corrupção e se apresentar como o polo do antifascismo.
Retrospectivamente é impossível dizer se outra estratégia teria mais sucesso, mas essa foi
insuficiente para aplacar a ira antipetista e o tsunami de notícias mentirosas espalhadas pelo
whatsapp.
O eleitor que, não sem razão, desconfia da capacidade do governo de resolver os problemas
concretos que ele encara todos os dias como falta de emprego, saneamento, saúde e
educação precários, desigualdade fiscal etc. se viu aturdido com o bombardeamento de
notícias sobre as mamadeiras de piroca, as vantagens de ter armas ao alcance de uma
passada no shopping e a convocação para defender o verde e o amarelo da bandeira.
No meio desse ilusionismo, nutrido pelo medo e a saturação com a crise, o eleitor médio
preferiu apostar na mudança. Inclusive muitas vezes apostando que o candidato não iria
cumprir suas promessas. Nem todas, pelo menos.

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