Aux armes, citoyens!


Cada governo escolhe um rosto pra chamar de seu. Foi assim com a estabilização da moeda no de FHC e o Bolsa Família no de Lula. Dilma não conseguiu imprimir uma marca à sua gestão. É sintomático inclusive a mudança no slogan do primeiro para o segundo mandato (de “País rico é país sem miséria” para “Patria educadora”). Bolsonaro, por sua vez, parece não ter dúvidas quanto ao seu. Depois de medidas que alteraram a configuração dos ministérios, a primeira ação
concreta anunciada, no ínício da segunda quinzena do novo governo foi o decreto que facilita o acesso à posse de armas de fogo.
Poderia ser algo para simplificar a abertura de novas empresas. Poderia ser a desoneração de algum tributo. Poderia ser alguma medida para ampliar o controle sobre os gastos públicos e o fomento da transparência. Eu, que nem sou muito imaginativa, poderia fabular umas vinte medidas que poderiam ser tomadas via decreto presidencial que iriam ao encontro daquele que se convencionou chamar de anseio do eleitor. No caso, do eleitor de Bolsonaro. Mas ele escolheu essa.
É verdade que o Brasil vive o apocalipse zumbi na segurança pública. Segundo dados divulgados em maio de 2018 pela OMS (Organização Mundial da Saúde), o Brasil tem o nono maior índice de homicídios do mundo. São 31,1 mortos por 100 mil habitantes (com base nos números de 2016). Para se ter uma ideia da gravidade, segundo a mesma fonte, as taxas brasileiras são cinco vezes a média mundial de homicídios.
Isso sem falar das centenas de milhares de roubos e furtos e agressões e tentativas de assassinato que não são computadas nesta estatística acima. Viver no Brasil é perigoso. A polícia é despreparada, não conta com treinamento adequado, equipamentos adequados, salários adequados. Não existe uma inteligência nacional de combate ao crime. Não existe investigação e os crimes ficam em sua maioria impunes. Mesmo casos que mobilizam a opinião pública, como o assassinato de Marielle Franco. O máximo que Brasília conseguiu pensar como solução para o caos na segurança pública foi colocar soldados sem capacitação nas ruas, num claro desvio das funções constitucionais das Forças Armadas.
O problema é complexo e envolve, além de questões relativas à precária estrutura policial do país, questões sociais. Estas, também, complicadas. Desigualdade social, falta de oportunidades e horizontes para os jovens pobres que acabam empurrados para o tráfico, pouco apreço pela vida humana etc. Tão complexo que nenhum governo nas últimas décadas encarou o desafio de enfrentá-lo. Os governadores normalmente restringem sua ação à força policial, com resultados globais
próximos de zero, já que os índices de homicídio e outras formas de violência aumentam consistentemente há muitos anos.
Diante desse panorama, qual é então a primeira medida de Bolsonaro, que martelou a questão da segurança pública durante a campanha? Basicamente suspende as barreiras para a posse de armas de fogo.
Em nome dessa falácia da legítima defesa, vamos então ajudar as pessoas a se matarem um pouco mais...
Importante salientar que o Brasil já lidera a lista internacional de mortes anuais por armas de fogo, com 43.200 mortes em 2016, segundo um levantamento publicado na revista científica JAMA em agosto de 2018. Segundo a mesma revista, de cada 4 mortes por arma de fogo ocorrida no mundo, uma acontece no Brasil. É como se uma Arena da Baixada cheia sumisse por ano. É uma tragédia. É a barbárie.
E nem vale a pena discutir balelas como o efeito dissuasivo da posse de arma. A própria polícia sempre recomendou não se reagir a assalto. Se o ladrão entrar na casa do cidadão de bem armado provavelmente vai sair de lá com um arsenal de armas, só isso, o que inclusive aumenta o interesse no roubo. Arsenal que o ladrão pode usar para matar mais policiais, por exemplo. Ou para aparelhar melhor o crime organizado.
Enquanto isso, esse mesmo cidadão de bem vai muitas vezes deixar a arma acessível a um filho deprimido ou ingênuo; vai usá-la para dissuadir a mulher de contrariá-lo; vai se sentir muito mais macho quando for brigar com o vizinho que colocou o som alto e por aí vai. A maior parte dos que acreditam que precisam de uma arma (ou várias) não raramente já é propensa à violência. Os números de homicídios ocorridos no Brasil demonstra que as pessoas atiram sem muito escrúpulo.
Para mim, mesmo que não fizesse mais nenhuma bobagem, no que não apostaria nem um vintém aliás, o governo Bolsonaro já escolheu o rosto errado e fracassou. O slogan é tão velho que dá vergonha repetir, mas as coisas andam tão confusas no Brasil que, vamos lá vencer a vergonha: violência não se combate com violência.

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