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Mostrando postagens de junho, 2019

O ódio retratado

Ontem maratonei pela história recente do Brasil narrada em dois documentários. A democracia em vertigem de Petra Costa (Netflix) e El odio (Youtube) do uruguaio Andrés Sal-Iari.  Fiquei pensando em como pacatos cidadãos de meia idade, educação formal e estabilidade financeira se transformaram em cães raivosos, fanatizados, destituídos de qualquer sombra de reflexão. Qual foi a alquimia responsável por condensar medo e ódio transformando-os em energia política de destruição. Tu do o que possamos dizer sobre a manipulação evidente da Lavajato e da mídia, sobre os oportunistas políticos etc. não passa nem perto de uma explicação para o aparecimento dessa matilha que depois se transformou num exército de cabos eleitorais de Bolsonaro. Não foram os únicos, mas certamente foram os mais atuantes. Vendo tudo em retrospecto, é tão claro que não poderia dar em outra coisa que na eleição de um ser tão ignóbil como o presidente e sua camarilha de seres rastejantes. Não há outro projeto possivel qu

Rio menos lindo

O Rio de Janeiro saiu um pouco mais destruído ontem. De uma chuva. Não uma bomba, de uma terremoto, de um ciclone mas de uma chuva. O mesmo aconteceu em São Paulo há cerca de um mês. Chuvas fortes, fenômeno recorrente em um país tropical, estão matando às dezenas. Tem também as repetidas chacinas, os "incidentes" com moradores de periferia, os milhares assassinados todos os anos, as barragens que se rompem, os incêndios em acampamentos de times milionários. Não são apenas os  direitos sociais e políticos que estão sendo ameaçados, a vida é cada vez menos valiosa neste país. Todos ou quase, somos apenas números que, eventualmente tocados pela tragédia do nosso tempo, podem aparecer no noticiário por alguns segundos. Se aparecer, porque a maioria dos mortos não ganha nem isso. Mortos às dezenas, às centenas, aos milhares. Por descaso, por embrutecimento dos padrões civilizatórios, por selvageria. Os jacarés soltos em um bairro do Rio desde ontem são uma metáfora da selva de hor

Olavo, os militares e os Bolsonaro: o circo nosso de cada dia

Tive a paciência e o estômago para ver a entrevista que Olavo de Carvalho deu a Pedro Bial. Praticamente minha estreia com ele. Nesta, até pousou de razoável comparado às escatologias que povoam suas postagens nas redes sociais. Aliás, coisa fácil diante do entrevistador chapa branca que não fez outra coisa que deixá-lo à vontade, reverenciando-o. É vaidoso, mas é principalmente alguém que convence os outros daquilo em que nem ele acredita. Ele está ali só surfando numa onda internacional de recrudescimento de ideias fascistas. Essa onda provavelmente ganhou o mundo a partir da guerra da Bósnia, em 1992. Mas se proclama filósofo, disse que escreve livros pros próximos séculos, milênios até. Um Aristóteles. Ele não me convenceu de que está convencido disso. Pelo contrário, me pareceu que ele sabe bem que é uma fraude. É louco mas não rasga dinheiro. Suspeito que nasça daí, além da necessidade de pagar as contas, a lógica de fundar uma seita, os olavetes. Mas que seita seria essa? Cla

A ultra-direita

Eu estou bem incomodada com o que tenho lido sobre o "protesto a favor" de ontem. Essa ênfase no tamanho deste em comparação com o outro está me parecendo reducionista. Fica parecendo que a questão é simplesmente ver quem consegue por mais gente na rua.  Trazendo pra cá um dito popular de outro contexto, tamanho não é documento. Tanto que ambos os lados festejam os resultados.  O fato que me parece mais relevante é que cidadãos escolarizados e de alta renda (em sua maioria, s egundo pesquisas realizadas) tomaram gosto em se reunir com a sua galera, sair pelo rolê dominical, donos de uma expressiva superioridade moral suposta a demonstrar seu apreço pelo presidente e pelos ministros de estimação. Isso num contexto em que o dito presidente não tomou uma única medida para conter a clara decadência econômica, cultural, educacional do país que eles dizem defender. Num contexto em que os laços deste com as milícias e com velhíssimas práticas da corrupção dos gabinetes de políticos

As políticas de morte

As políticas de morte de Bolsonaro ganharam um novo capítulo: liberar geral no trânsito. No trânsito. Aquele mesmo que já mata cerca de 40.000 pessoas por ano e deixa um número incalculado de sequelados.  Já tinha liberado geral nas armas. No país que mata mais de 60.000 por ano, destas 73% por arma de fogo.  Já tinha liberado quase 200 venenos agro em 5 meses. Já tinha proposto licença pra policial matar.  Tem gente falando em prioridades. Que o governo não sabe escolher prioridades. Claro que sabe. TODAS as ações são de morte ou de terra arrasada.

O cidadão de bem e o cidadão de mal

Estava eu aqui pensando em como não consigo me enquadrar na ideia do cidadão de bem. Não que tenha tentado muito, mas agora tantas coisas só lhe são reservadas que às vezes dá uma vontadinha de dar uma espiada no lado de lá do muro. Parece que são muito respeitáveis, em seus carros caros e suas casas empetecadas. Cidadãos de bem de estirpe, com gravata e capital. Morando bem, quem sabe até candidato a malandro federal; ops, deputado federal (data vênia, Chico!) Porque todos sabem que a categoria cidadão de bem cabe a quem pode pagar por uma arma e pelo processo de seu registro. E pode pagar por um cofre. E pode pagar por um curso de tiro. Ou seja, quem tem pelo menos R$ 10.000,00 livre de qualquer outra urgência da vida. Aos demais, somos todos um tanto suspeitos. Se é pobre e entra num shopping fino, deve estar querendo roubar; ou exercer a inveja ou a ganância, pecados mortais. Se mora numa periferia e é preto, será o primeiro a ser parado pela polícia e revistado. Mesmo com uni

Aux armes, citoyens!

Cada governo escolhe um rosto pra chamar de seu. Foi assim com a estabilização da moeda no de FHC e o Bolsa Família no de Lula. Dilma não conseguiu imprimir uma marca à sua gestão. É sintomático inclusive a mudança no slogan do primeiro para o segundo mandato (de “País rico é país sem miséria” para “Patria educadora”). Bolsonaro, por sua vez, parece não ter dúvidas quanto ao seu. Depois de medidas que alteraram a configuração dos ministérios, a primeira ação concreta anunciada, no ínício da segunda quinzena do novo governo foi o decreto que facilita o acesso à posse de armas de fogo. Poderia ser algo para simplificar a abertura de novas empresas. Poderia ser a desoneração de algum tributo. Poderia ser alguma medida para ampliar o controle sobre os gastos públicos e o fomento da transparência. Eu, que nem sou muito imaginativa, poderia fabular umas vinte medidas que poderiam ser tomadas via decreto presidencial que iriam ao encontro daquele que se convencionou chamar de anseio do ele

Democracia arcaica

No século XIX, ainda durante Império, o Brasil possuía um sistema representativo bastante restrito. Para votar, o cidadão precisava comprovar certa renda anual. Além disso, mulheres, escravos, analfabetos e pobres não votavam. O fim do voto censitário e o fim do regime escravocrata ampliaram a representação ainda no século XIX, mas o voto das mulheres só aconteceu na década de 30 do século XX e o voto dos analfabetos só foi alcançado em 1985, no fim do Regime Militar. Esses momentos foram fundamentais para o alargamento das bases democráticas do nosso regime. Esse processo implicou uma intensa disputa. Se considerarmos apenas o voto dos analfabetos, este ainda hoje é criticado por uma parte de nossa elite, que confunde convenientemente escolaridade com capacidade de discernimento dos próprios interesses e dos interesses públicos, fundamentos da decisão eleitoral. Ou seja, a depender desta, pessoas com baixa escolaridade continuariam alijadas do processo político. Mesmo sen

Como e por quê criar um espantalho

Depois da ditadura militar, que acabou em 1985 e entregou um Brasil endividado, estagnado e com inflação nas alturas, a direita brasileira se encolheu e se camuflou. Até 10 anos atrás, nenhum partido político se autodenominava “de direita”. No máximo havia os “de centro” como o PFL (antes PDS, depois Democratas) mais conservadores, ou os liberais. como o PL e o PTB. Ninguém ou quase ousava se anunciar de direita. No final do primeiro governo Lula isso começou a mudar. O chamado escândalo do mensalão fez certas forças políticas perceberem que havia uma brecha para reverter a hegemonia que a centro esquerda havia alcançado no Brasil desde o governo de Itamar Franco (vamos aqui conceder que o governo de FHC não foi direita, apesar de tudo). Mas como aproveitar essa brecha? O discurso contra a corrupção é um cavalo selado que passeia na história política brasileira há décadas. Serviu para minar Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, serviu ao PT que esbravejava contra os escândalos

Entre o kit gay e o desemprego à espreita

As últimas eleições presidenciais nos deixaram um legado de explicações a serem encontradas e de paradigmas consagrados derrubados. Para ilustrar estes últimos, por exemplo a ideia de que sem tempo de TV nenhum candidato iria longe. Por exemplo a ideia de que partido pequeno e sem estrutura nacional não teria futuro eleitoral em eleições majoritárias. E ainda a ideia de que o par PT x PSDB, hegemônico nos últimos 24 anos, ainda não seria superado. A eleição de Bolsonaro colocou, portanto, alguns cânones da ciência política brasileira de cabeça pra baixo. Um dos enigmas mais intrigantes entretanto é por que e como em meio a uma crise econômica de grandes proporções, com altas taxas de desemprego, perda de poder aquisitivo, endividamento das famílias etc. ou seja, premências urgentes do mundo real, questões aparentemente marginais como “kit gay”, “ideologia de gênero” e ameaça “comunista” puderam se tornar determinantes. Levaremos anos compreendendo esse fenômeno raro de ali