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Da paixão

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                    Um dia acordou e decidiu pintar todas as paredes da sala de vermelho. Um vermelho ardente e deslumbrante. Um vermelho que fosse transbordante como se tornara sua vida. E opressivo, porque tomava conta de tudo. A vida subindo pelas paredes e chegando ao teto depois de se derramar sobre seu corpo. Porque fora assim. Desatino, revolução, desvario. As palavras que faltavam para dizer do incêndio que queimara suas amarras.  Quando ainda tinha medo, era outra coisa. Ela bem pressentiu o abismo que se avizinhava.  A febre ainda não tinha chegado, mas seu bafo quente já estava próximo, arrepiando os pelos escuros de seu pescoço esguio. Seria o mergulho vertical, como o do soldado que duvida do seu paraquedas, mas salta, sem escolha. A vertigem já estava lá, nauseando docemente o estômago, revirando os intestinos. Penetrando nos pensamentos mais recônditos. O coração disparando por um pensamento. O sexo molhado por uma lembrança.  A paixão é também, obliquamente, uma d

Bolsonaro tem jogado xadrez e nós, jogo da velha

  Subestimar o adversário é uma armadilha difícil de evitar. Principalmente se este articula mal as palavras, faz piadas como o tio do pavê e parece mesmo a própria encarnação deste, entre outros símbolos de indigência e tosquice. A superioridade intelectual da elite sudestina e suas sucursais lhe parece tão evidente que seria preciso fazer um grande esforço desnarcizante para aceitarmos que ele está jogando um jogo bem mais sofisticado que o nosso.   Estamos no jogo da velha, no amarelinha, na dama. Digo isso porque a euforia com que são recebidas pesquisas realizadas até aqui dando uma vitória folgada ao ex-presidente Lula me dão nervoso. Penso que o otimismo nunca é bom conselheiro, principalmente quando tanto está em jogo.   É certo que governar nunca foi muito a praia do ex-capitão. Primeiro ele achou que poderia delegar para o Paulo Guedes. Quando este se mostrou tão inepto quanto ele, jogou no colo do “centrão” a tarefa e foi andar de jet-ski e de moto, além de fazer lives

No Além

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  Quando deu por si estava morta. Não que soubesse imediatamente, mas achou tudo meio estranho e uma alma caridosa que passava por ali, vendo sua cara de perdida, lhe avisou. Aqui é o Além, minha filha. Vais ficar por aqui um tempo, fazendo estágio. Depois veremos para onde você vai. Ela mal conteve seu espanto. Fazia dois ou três dias que ainda estava trabalhando na Gávea, na casa da patroa que conhecia há vinte anos. A casa que cuidava como se fosse sua. Sabia de cada rachadura nova, cada mancha que teimava aparecer na pintura já meio antiga. Conhecia-a melhor que os próprios moradores, tinha certeza. Há dois dias estava ali ainda, meio ofegante, mas teimando em ser firme. A patroa tinha voltado de viagem na semana anterior, as coisas ainda não estavam bem arrumadas como deveriam estar e por isso, disfarçou o mal-estar quanto pôde. Já bastava a patroa adoentada. Deve ser o ar condicionado do avião, se lhe disse. Sabe como é, muitas horas. Sabia não. Esse negócio de Europa e aviã

Fora de casa

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  Viajar serve para muitas coisas. A melhor é colocar uma perspectiva entre você e as suas certezas. As minhas são poucas, mínimas, raquíticas. Mas, mesmo assim, logo estão sendo nocauteadas por um pulinho ali no agreste. Um dia, deixando o litoral atrás de mim e duas centenas de quilômetros depois, já no interior do Rio Grande do Norte, fui visitar um engenho de cana-de-açúcar. Paisagem seca, verde escasso. Numa estradinha em que se podia ver ao longe vacas magras e cabras prenhas, um engenho raiz. Um galpão acanhado de madeira velha e uma fornalha capaz de derreter metal e vidro. Ao lado do grande tacho, uma mulher ainda moça, mas já desdentada, fazia um doce movimento em ésse para que a rapadura fosse lisa. A rapadura perfeita ao custo de cozinhar também os músculos e o sangue e os dentes da mulher. Revi 150 anos de ventre livre. Uma tataravó devia embalar a mesma cana até que esta se tornasse um líquido quase tão escuro quanto a pele dela. O Brasil é pura repetição de crueldad