Qual Brasil está acima de tudo?

Acabo de ler Quarto de despejo de Carolina Maria de Jesus. Para quem não conhece, ela é uma escritora negra que, na época em que escreveu o livro, vivia numa favela à beira do Rio Tietê em São Paulo. Era meados dos anos de 1950, e era o Brasil de Adhemar de Barros e Jucelino Kubitschek. O livro é construído como um diário. Sua força narrativa vem da crueza das descrições e da repetição de uma rotina dura. Todos os dias sair do seu barraco e ir em busca de papel ou ferro, afim de vendê-los e alimentar seus 3 filhos. Ela caminha por horas e volta pra casa com poucos cruzeiros com os quais compra pão, açucar, café. Na favela, enfrenta a violência diária dos homens que batem em suas mulheres, a hostilidade destas com uma mulher negra que cria sozinha seus filhos e escreve todos os dias e ainda luta para proteger seus filhos da marginalidade que os ronda. É uma batalha diária pela sobrevivência mas o principal adversário é a fome. Todos os dias são incertos e a possibilidade de não conseguir o dinheiro mínimo necessário é um fantasma que não dá tréguas.
Pensei nisso na semana em que o presidente disse que é mentira que haja fome no Brasil. 
Mesmo que se ignorasse o fato de que, segundo dados da ONU, existem mais de 5 milhões de pessoas que passam fome no Brasil, basta ir em qualquer esquina de uma grande cidade brasiliera para ver as centenas de pessoas que estão morando na rua e têm que, a cada dia, garantir de alguma forma seus alimentos. Quer pedindo esmolas, quer cuidando de carros, quer vendendo bugigangas. É cada dia. É uma labuta diária e estes não tem casa para onde voltar. Não é possível que alguém possa ignorar isso. Voltamos várias casas no quesito fome. 
Voltamos ao Brasil de Carolina Maria de Jesus.
Penso então no slogan "Brasil acima de tudo" e pergunto que Brasil é esse. De que Brasil estão falando. 
Não é este desses famintos. Também não é o das crianças, estas podem morrer no trânsito pelo incentivo à imprudência dos motoristas ou pela falta de uma cadeira de segurança. Elas também precisam de trabalho e não de escola. Tampouco é o Brasil das mulheres, oferecidas ao turismo sexual e reiteramente chamadas de "feias", como meio supremo de desqualificação (o que dá, em si, uma tese sobre o machismo e a misogina). Também não é o Brasil dos negros, que podem ser medidos em arrobas e não servem para fornecer nem parceiros para os filhos dos brancos, afinal quem tem boa educação não se mistura. Não é o Brasil dos LGBTI+, porque é melhor ter um filho morto que gay, que dirá outras formas de identidade. Também não é o Brasil dos idosos e inválidos, condenados a morrer na miséria, sem aposentadoria digna e sem trabalho. Aliás, também não é o Brasil dos desempregados, porque afinal estes estão superestimados. Não é o Brasil dos que necessitam de remédios de uso contínuo pois seu fornecimento será suspenso. Também não é o Brasil dos iludidos com a meritocracia, afinal a onda é beneficiar os filhos com as benesses do poder. 
Então qual é este Brasil que está acima de tudo?
A resposta é simples e todos a conhecemos. Ele nunca foi tão pequeno. O projeto de exclusão nunca foi tão explícito.
Mas, para lembrar Chico Buarque, " este silêncio todo me atordoa, atordoado permaneço atento, na arquibancada a qualquer momento, ver emergir o monstro da lagoa.' 
O monstro está aí e sua face é horrenda. E o silêncio em torno dele é realmente tão grande e assustador quanto ele.

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