Democracia arcaica



No século XIX, ainda durante Império, o Brasil possuía um sistema representativo bastante
restrito. Para votar, o cidadão precisava comprovar certa renda anual. Além disso, mulheres,
escravos, analfabetos e pobres não votavam. O fim do voto censitário e o fim do regime
escravocrata ampliaram a representação ainda no século XIX, mas o voto das mulheres só
aconteceu na década de 30 do século XX e o voto dos analfabetos só foi alcançado em 1985,
no fim do Regime Militar. Esses momentos foram fundamentais para o alargamento das bases
democráticas do nosso regime.
Esse processo implicou uma intensa disputa. Se considerarmos apenas o voto dos analfabetos,
este ainda hoje é criticado por uma parte de nossa elite, que confunde convenientemente
escolaridade com capacidade de discernimento dos próprios interesses e dos interesses
públicos, fundamentos da decisão eleitoral. Ou seja, a depender desta, pessoas com baixa
escolaridade continuariam alijadas do processo político. Mesmo sendo trabalhadores e
pagando impostos como qualquer outro cidadão. Isso nos indica o quanto o espaço de poder
representado pelo processo eleitoral é importante. Eleitores são importantes e eleitos são
importantes.
No caso do voto das mulheres, sua histórica sub-representação na política brasileira nos
lembra que o voto feminino é apenas a metade do caminho percorrido para a incorporação das
mulheres na vida e no debate públicos.
Desde 1997, uma série de leis e normas têm incentivado o acréscimo do número de mulheres
eleitas nas eleições proporcionais, por meio do aumento do número de candidatas. A Lei das
Eleições (Lei no 9.504, de 1997) estabeleceu que, nas eleições proporcionais, deve haver cota
para candidatas do sexo feminino e uma norma de 2009 fixou que cada partido ou coligação
preencherá o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo. Em 2015,
foram criados mecanismos de punição aos partidos que desrespeitassem o percentual mínimo
de candidatas e, nesta última eleição de 2018, o Tribunal Superior Eleitoral obrigou os partidos
a destinarem um percentual de financiamento proporcional ao número de candidatas, ou seja,
30% no mínimo.
Os efeitos dessa legislação, que já tem mais de 20 anos, são lentos. Até a eleição de 2018,
sendo cerca de 52% do contingente de eleitores, as mulheres ocupavam cerca de 10 % da
Câmara dos Deputados. Na eleição do ano passado houve de fato um salto percentual, uma
vez que essa representação cresceu 50%, com a eleição de 77 deputadas. Ainda assim, elas
representam apenas 15% da composição total da Câmara Federal.
No Senado, no entanto, não houve mudança. Em 2010, última eleição na qual 2/3 do Senado
foram renovados, sete mulheres foram eleitas senadoras. Em 2018, o número se repetiu. As
sete senadoras eleitas representam 13% do total de eleitos neste ano. Além disso, nenhuma
mulher foi eleita para o Senado em 20 estados. E em três deles, Acre Bahia e Tocantins, não
houve sequer candidatas.
No estado do Paraná, na segunda região mais rica do país, foram eleitas apenas 5 deputadas
federais entre os 30 representantes do estado para a Câmara Federal. Na Assembleia
Legislativa, são 4 deputadas estaduais num universo de 54 eleitos.
O conjunto destes números coloca o país nos últimos lugares de rankings internacionais de
participação de mulheres na composição dos parlamentos. Ora, todos os estudos realizados
nas democracias mais avançadas do mundo indicam que menos mulheres na política
compromete a qualidade dos sistemas democráticos e das políticas públicas destinadas a
áreas nevrálgicas para o interesse público como saúde, educação, distribuição de renda etc.
Dessa forma, se pensarmos no caso brasileiro, além de frágil, já que suas instituições
primordiais (Executivo, Legislativo e Judiciário) carecem da confiança da população, nossa
democracia é ainda arcaica. Ela representa um tempo histórico em que mulheres eram
essencialmente subalternas, sem participação no espaço público.
Para mudar isso, precisamos ampliar a presença das mulheres na política, na imprensa, nos
cargos de poder e decisão em universidades e empresas. Só assim, pautas que interessem à
metade da população vão ganhar visibilidade. Só assim, a experiência advinda do lugar social
ocupado pelas mulheres pode enriquecer o debate público, decisões políticas e políticas
públicas.
Ou seja, precisamos urgentemente melhorar a partilha do poder político em nosso país.

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