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Mostrando postagens de 2020

O novo romance político de Cristovão Tezza

  (contém spoiler)   Lançado recentemente, A tensão superficial do tempo do escritor Cristovão Tezza mergulha na banalidade da vida de Cândido, num momento de impasse deste diante de uma desilusão amorosa. A personagem principal é um professor de química que é também especialista em baixar clandestinamente filmes na internet. Em clima claustrofóbico, uma vez que o narrador conta tudo apenas sob a perspectiva de Cândido, vemos lentamente a história se constituir. Enquanto rememora cada momento do caminho que o levou a conhecer e se apaixonar por Antônia, a esposa de um procurador federal de Curitiba, a narrativa distribui fragmentos aparentemente aleatórios sobre sua vida, centrada na relação de Cândido com sua mãe adotiva, no casamento fracassado com Hélia e no cotidiano da sala de professores do cursinho de elite no qual é professor e sócio.   Tezza mostra no romance sua maturidade como escritor. Com grande virtuosismo narrativo em que diferentes tempos, espaços e personagen

O comitê golpista é o incrível exército de Brancaleone

A ofensiva golpista da família Bolsonaro é cada vez mais explícita e laboriosa. Mas tem se mostrado, na mesma medida, um delírio. Isso não quer dizer que o trabalho de criação de um Estado autoritário não tenha seus momentos de eficácia e que uma potente corrosão democrática não esteja ocorrendo. Por isso mesmo, é preciso saber exatamente onde o monstro se aloja para melhor o combater. A palavra golpe já deve ser uma das mais citadas de 2020. Não sem razão. Reintroduzida recentemente pelo deputado Eduardo Bolsonaro, o chanceler frustrado e ventríloquo do pai, o mesmo que, em 2018 já proclamava que para fechar o STF “bastam um soldado e um cabo”, agora se sente à vontade para dizer que “não é uma questão de se, mas de quando” haverá uma ruptura. A ameaça de golpe deixa de ser um mero método de governo, para ser um horizonte perseguido pela família. Condenados ver aqui a história se repetir indefinidamente, sempre como farsa, hoje precisamos voltar a proclamar “não vai

Os militares fecham com Bolsonaro

O artigo do general Hamilton Mourão publicado no Estadão em 14/05 não poderia ser mais claro. Os militares que fazem parte do governo fecham com o presidente. Nem as pesadas acusações do ex-ídolo Sérgio Moro foram capazes de os abalar. Pode até ser que a cúpula pratique o auto engano e se iluda que tutela Bolsonaro. Mas é cada vez mais evidente que, se tem alguém tutelado nesta história, são eles e não o presidente. Este basicamente faz o que quer e se sente cada vez mais à vontade para fazê-lo. Os pouquíssimos freios antepostos o foram pelo Congresso e pelo STF, nunca pelos generais. Bolsonaro é uma máquina de moer instituições e as Forças Armadas foram a primeira a ser triturada. Não que ela fosse grande coisa. Basta ver que esses que formam a  entourage  do presidente estiveram no comando dela até ontem e são o que são. A indigência intelectual, a paranoia institucionalizada, o autoritarismo mais tosco dão espetáculos cotidianos. Mas até ontem, justamente, eles eram apenas milit

Os crimes de Bolsonaro

Começou com a falta de consideração pela chamada liturgia do cargo, o cidadão se comportando como se fosse um ninguém, que pudesse fazer e dizer o que lhe vem à cabeça, ignorando, inclusive, as boas maneiras e a verdade mais comezinha, aquela que pode ser verificada com três minutos de pesquisa. Como à sua cabeça não vem nada que não seja do repertório da morte e da escatologia, usou e abusou dos cocôs, das arminhas, da mentira deslavada. Mas lhe aplaudem. É um sujeito autêntico. Grosso, mas cansados de políticos engomados, com seus discursos prontos, lhe perdoam. Depois veio o ataque às instituições. O STF casuístico e corrupto, o Congresso prevaricador e corrupto, a imprensa mentirosa e vendida aos interesses dos comunistas. As hienas da nação, ávidas pelo sangue dos justos que lutam por um Brasil acima de tudo. As instituições reagiram, via de regra, mansamente. É grave, mas veja bem, o presidente tem seus arroubos. Fala da boca pra fora. Não quis dizer bem isso. Convoc

As apostas insanas de Bolsonaro

Vivemos a semana da infâmia. A semana em que o governo Bolsonaro ultrapassou com folga sua própria marca de ignomínia. Foi um rosário de abjeções: a medida provisória que permitia corte de salário por 4 meses, o pronunciamento exortando as pessoas a abandonarem a quarentena, a campanha “o Brasil não pode parar”, os sucessivos desafios a governadores e prefeitos e, finalmente, o rolê em Brasília e na Ceilândia. De domingo a domingo, ele se esforça para prover nosso confinamento de um show de horrores. Bolsonaro, cuja racionalidade sempre foi colocada um pouco em dúvida, parece apostar todas as suas fichas numa loucura coletiva sem precedentes. Eleito presidente meio no susto, a despeito de si mesmo e contra as previsões, soube manter uma base de apoio de cerca de 1/3 do eleitorado desde o início de seu governo, apesar de todas as trapalhadas, toda a ineficiência, todas as medidas que contrariam o interesse popular. Copiando literalmente as táticas de Trump de mentir desc

Renúncia já

Não é possível prever a dimensão do impacto que a epidemia causada pelo corona vírus terá sobre o Brasil. Mas é certo que o dano será profundo, desagregador. Muitas pessoas irão morrer. De covid -19 e também de outras doenças, pois o sistema de saúde estará esgotado e milhões de pessoas totalmente desassistidas. Quase todos os quarenta milhões de trabalhadores informais perderão suas rendas. Os trabalhadores formais não estão em muito melhor condição. Segundo dados de 2017 do IBGE, metade da mão de obra formalizada no Brasil trabalha em empresas com até 5 empregados. São pequenas empresas. Quantas vão sobreviver a uma crise aguda que pode durar até julho ou até setembro segundo previsão do próprio Ministério da Saúde? Juntemos a essa conta os quase doze milhões de desempregados. Formas variadas de desespero levarão ao caos e à morte. Diferentes formas de morte. Numa pandemia em que isolamento ou distanciamento social e medidas de higiene são o cordão de contenção, o qu

As mulheres não estão se comportando bem

Quero dizer uma coisa. Está muito difícil ser mulher neste país. Não começou em 2018, mas se agravou desde então. O presidente é um militante da promoção da violência contra nós, mulheres. Por palavras, gestos e ações ele não se cansa de mostrar seu desprezo pelas mulheres. As frases são conhecidas e já entraram para os anais da história do machismo e da misoginia no Brasil. As ações são institucionais: a mínima representação feminina não apenas nos cargos de primeiro escalão mas em todas as instâncias de governo; o item da reforma da previdência proposta por seu governo que permitia que mulheres grávidas trabalhassem em condições de insalubridade; o corte na verba do programa de prevenção à violência doméstica. Os exemplos práticos de uma política de rebaixamento simbólico e extermínio são muitos.  Políticas de extermínio? Nossa, que exagero dirão alguns. Não é exagero. A maior parte das políticas de extermínio não pretende de fato exterminar, mas antes controlar, dirigir, criar

O fim de uma era

Meus amigos, meus inimigos. Verdade que ando meio apocalíptica, mas ninguém há de me condenar de desvairada nos tempos que seguem. Os motivos de esperança, se os houve em algum momento neste curto século XXI, já se esvaíram no suspiro de nossa república moribunda. Como é possível ter esperança se as ruas são tomadas por zumbis convictos, capazes de ignorar toda razão, toda prudência, toda vergonha para pedir e defender o inominável. No momento de uma pandemia que amedronta o mundo, o presidente vai à TV e em míseros 119 segundos pouco mais diz que a causa dos zumbis é válida. O apocalipse não vem tanto do que ele diz porque pela repetição não assusta mais ninguém (sim, a vírus que cria mortos-vivos se espalha mais que o corona e estamos todos contaminados). A sensação de fim do mundo vem de sua figura mesmo. A ausência de vida atrás daqueles olhos vidrados, embaçados, rotos. Daquela boca que nada mais é que um furo. Triste o país liderado por uma figura que perdeu a al

Fabricando jeans e meritocratas

Muitos temos noa perguntado como as periferias e o interior do Brasil puderam aderir tão fortemente a certos preceitos do ultraliberalismo, como a meritocracia, em um ambiente tão desigual quanto o brasileiro. E ainda, como a perda de direitos que tinham décadas de existência, como os da CLT, puderam ser suprimidos sem que houvesse grandes protestos ou, ao menos, uma comoção social. As respostas são complexas e provavelmente ainda não conhecemos todas as suas camadas, que só serão perceptíveis na decantação do tempo histórico. Disponível na Netflix, o documentário “Estou me guardando para quando o carnaval chegar” de Marcelo Gomes, pode nos dar uma pista, entretanto, de uma das variáveis que está em jogo. Marcelo Gomes, que já fez “Cinema, aspirinas e urubus”, vai ao encontro da pequena cidade de Toritama, no agreste pernambucano. Em sua infância, ele visitava o vilarejo em companhia do pai. Era então uma cidade rural dominada pelos pequenos agricultores e pelo silêncio. O lugar

Por que o autoritarismo deu match com o ultraliberalismo? Ou o flerte com o AI-5

Pela segunda vez em menos de dois meses um membro do governo Bolsonaro recorre ao AI-5 para intimidar adversários. Eduardo Bolsonaro procurava uma resposta a possíveis protestos no Brasil, como os que ocorreram no Chile. Paulo Guedes acena com a forma mais dura do autoritarismo brasileiro para conter o povo na rua, posição defendida por Lula. Ambos falaram e aparentemente voltaram atrás. Só que não. Estamos longe do reconhecimento de que um limite do enquadramento constitucional foi rompido e é preciso recuar. Antes, são declarações que cumprem uma missão e esta já está realizada no momento mesmo de sua enunciação. Aquilo que parecia intolerável é aplaudido em praça pública e mobiliza a matilha bolsonarista. Tanto que essa estratégia de dizer e desdizer é reiterada e sistemática, uma vez que o bloco no poder abusa de declarações e iniciativas reconhecidamente antidemocráticas. As declarações abrem alas para proposições concretas, como o projeto que ressuscita o excludente de ilicitu

As lições aprendidas pelos Bolsonaro

Em maio de 2017, vazou o áudio de um diálogo entre Michel Temer e Joesley Batista em que se revelava  a promiscuidade escandalosa entre o público e o privado. Joesley Batista, dono da JBS, empresa bilionária do setor de alimentos, frequentava o Palácio do Planalto em altas horas e fora da agenda oficial para tratar de seus interesses e das propinas pagas a outros políticos, como o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, já preso. Ficou famosa a frase do presidente, “tem de manter isso aí, viu?”. O mundo veio abaixo. Um colunista do Globo chegou a afirmar que Temer renunciaria, e o grupo Globo começou uma campanha por sua renúncia. Houve muito baralho. Mas todos conhecemos o desfecho dessa história. Temer teve  sangue frio para deixar a poeira assentar e terminou seu mandato tranquilamente.  Cito este entre dezenas de outros exemplos recentes de como, no mundo contemporâneo  da internet e das redes sociais, nada permanece por mais de algumas horas ou dias na pauta. E

A sombra do golpe como método de governo

Os flertes de Bolsonaro com uma ideia de golpe é antiga. Ele nunca teve nenhum escrúpulo de defender abertamente a ditadura de 1964. Não o apoio circunstanciado daqueles saudosos que imaginam que se vivia melhor no império quimérico da lei e da ordem. Não como o efeito colateral de uma necessidade histórica de conter a “ameaça comunista”, como foi o caso de muitos dos generais do Exército. Ele sempre esteve além disso. Bolsonaro é visceralmente golpista; um regime de exceção o delicia. Durante sua longa carreira como parlamentar,  defendeu orgulhosamente o lado podre do regime, a tortura e os torturadores. Queria que tivesse havido mais assassinatos. Sua convivência com o pessoal dos porões demonstra afinidade afetiva. Suas relações com a milícia do Rio são mais profundas que um esquema que lhe permitiu acumular eleições (as suas e as dos filhos) e poder e patrimônio. São seus amigos, os camaradas que frequentam sua casa, seus vizinhos, seus testas de ferro. Seus sócios, aqueles nos