A apatia

Muitos de nós temos nos perguntado pelos motivos da apatia política que se abateu sobre nós. Há as hipóteses de cunho psicológico (estamos cansados ou envergonhados). Eu tento outras explicações.
Minha hipótese é que a população mais pobre raramente se mobiliza em grandes manifestações de massa no Brasil. São tão achacados, são tão humilhados, são tão destituídos de direitos que não confiam nesse instrumento para melhorar suas vidas. Desconfiam (com razão) do Estado, dos políticos, das lideranças sociais ou sindicais. Preferem acreditar que o próprio esforço os salvará, oxalá com a ajuda de deus e da igreja. 
Outro extrato social recentemente bastante mobilizado, a classe média de direita que saiu às ruas envergando orgulhosa a camisa da CBF e bateu panela nas varandas país afora, só se mobiliza com temas de apelo moral. Assim foi em 1964 e em 2013/2015. Seu mote é sempre pelo fim da corrupção e "pela família". Ela se mobiliza quando sente medo e/ou se sente particularmente injustiçada. Medo da perda do status mais que pela perda de poder aquisitivo. Ela sabe muito bem, em parte porque o pratica, o horror a que os pobres são submetidos e teme ser confundida com eles. A exclusividade na fruição de certos serviços (medicina privada por exemplo), na ocupação de certos espaços públicos (aeroportos, por exemplo) etc. são marcas distintivas que garantem aos malabaristas da classe média (profissionais liberais, pequenos e médios empresários, alta gerência, funcionários públicos etc.) que eles são parte da elite, são a gente fina e sincera, os cidadãos de bem. Mesmo que o cheque especial seja acionado todo mês, mesmo que o carrão seja financiado em 72 prestações. Mesmo que parte de sua renda seja confiscada pelo capital financeiro, no passa nada. Eles imaginam que têm mais pontos em comum com o banqueiro que com os limpadores de banheiro. Num país de relações sociais tão desiguais, e por isso mesmo tão selvagens, é reconfortante saber (ou ter a ilusão) estar de um certo lado da contenda. Estar entre os mais iguais. 
Outro tema que ganha corações e mentes da classe média verde-amarela é a corrupção. Por duas razões. De um lado, a ojeriza aos impostos se eleva à enésima potência quando se suspeita que parte deste tão suado dinheirinho não apenas é desperdiçado pela exemplar ineficiência do Estado, como é apropriado por agentes corruptos. Mas, se a corrupção em geral é um tema mobilizador, por outro lado, sua força depende de quem a pratica. E aqui entra a segunda razão. Uma coisa é a corrupção servir para que o Lula compre tríplex no luxuoso balneário do Guarujá. Outra bem diferente é quando gente elegante a pratica. Gente como a gente praticando corrupção não parece tão grave. Aécio, Temer, Jucá etc. que nos digam. Os empresários corruptores, então, são quase heróis. Estavam só sobrevivendo na selva. 
Então, sim, têm seus corruptos de estimação. E não, não se sentem ameaçados pelo governo Temer. Pelo contrário. Ele, antes de tudo, pôs os pobres de volta a seus lugares. A famosa perda de direitos repetida pela esquerda não os atinge. Ou pelo menos eles ainda não se sentem atingidos. A bem da verdade, eles já são PJs, eles não contam com a aposentadoria do INSS, seus filhos estão em escolas particulares, eles não vão a museus. Desigualdade social não está na sua agenda. Eles se beneficiam dela. Tem a empregada doméstica baratinha, tem a manicure, tem o porteiro. A degradação social galopante que nos atingirá a todos, não está no curto horizonte de suas preocupações.
Restam a esquerda política, os movimentos sociais, o sindicalismo. Aqui penso que a apatia se dá principalmente porque faltam objetivos que toquem a carne dos concernidos e porque não vemos saídas.
Vamos usar a reforma trabalhista como exemplo da primeira razão. Na minha opinião, é o pior legado do governo Temer. Muito pior que uma eventual reforma da previdência. Um retrocesso com consequências gigantescas que serão cobradas nos próximos meses e anos. Como ela pôde passar praticamente sem nenhuma resistência? No fundo porque, apesar de ela atingir muita gente, não concerne diretamente a quase ninguém mobilizável atualmente. 
Os pobres são majoritariamente trabalhadores informais ou já são terceirizados. Os trabalhadores mais fortemente sindicalizados oferecerão mais resistência à sua aplicação prática mediante acordos coletivos, principalmente em cenários de crise econômica não tão intensa. Uma parte considerável da esquerda militante é intelectualizada e pouco atingida por mudanças na CLT (professores, jornalistas, artistas etc.), Ou seja, está engajada em movimentos sociais profissionalizados ou é constituída por funcionários públicos ou, ainda, vive de formas variadas de subsídios do Estado. 
Os maiores atingidos são os trabalhadores pouco politizados e sem representação política, como comerciários, gente que trabalha em escritórios, hospitais etc. Com esses, a única instituição que tem tido êxito em dialogar são as igrejas evangélicas. E os professores universitários do setor privado. Esses estarão entre os primeiros a dançar, mas provavelmente estão numericamente mais representados pela pataria.
Por fim, é difícil chamar pra luta e encontrar razões para lutar se há ausência de horizontes. As palavras de ordem específicas como “não à reforma da previdência”, parece muito abstrato pra quem tem 20 ou 30 anos. Palavras de ordem genéricas como “em defesa da democracia” não mobiliza ninguém. Palavras de ordem controversas, como “pela reforma política”, são perigosas. Palavras de ordem políticas como “fora Temer, eleições já” perderam o timing. E ainda desconfiamos que as eleições vão antes prolongar a agonia que se instaurou na sociedade brasileira que vencê-la.
A verdade é que não sabemos o que esperar do futuro. Estamos temendo-o. Assim sendo, vamos deixando como está pra ver como fica. (dez/ 2017)

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