Da paixão


        

        


Um dia acordou e decidiu pintar todas as paredes da sala de vermelho. Um vermelho ardente e deslumbrante. Um vermelho que fosse transbordante como se tornara sua vida. E opressivo, porque tomava conta de tudo. A vida subindo pelas paredes e chegando ao teto depois de se derramar sobre seu corpo. Porque fora assim. Desatino, revolução, desvario. As palavras que faltavam para dizer do incêndio que queimara suas amarras. 


Quando ainda tinha medo, era outra coisa. Ela bem pressentiu o abismo que se avizinhava. 


A febre ainda não tinha chegado, mas seu bafo quente já estava próximo, arrepiando os pelos escuros de seu pescoço esguio. Seria o mergulho vertical, como o do soldado que duvida do seu paraquedas, mas salta, sem escolha. A vertigem já estava lá, nauseando docemente o estômago, revirando os intestinos. Penetrando nos pensamentos mais recônditos. O coração disparando por um pensamento. O sexo molhado por uma lembrança. 


A paixão é também, obliquamente, uma decisão, ela sabe, alimentada durante anos pela leitura de romances juvenis cujas protagonistas eram arrebatadas de seus centros por sensações avassaladoras. É sempre preciso dizer sim. Mesmo a príncipes surpreendentes que chegavam em suas Ferrari ou seus iates, porque ninguém ali parecia enlouquecer por plebeus. E o seu também era um príncipe, ainda que sem os dotes da realeza, apenas o porte. Então era fácil se jogar, as cartas já estavam dadas. 


Fez ainda uma tentativa tímida de preservação. Quem sabe começar outra história simultaneamente para embaralhar as coisas, dividir sua atenção. Ficar entre dois pretendentes como uma donzela em perigo. Leiloar sua atenção. Pensou, mas não moveu um dedo para realizar o plano. Fora apenas uma hesitação por um instante breve. Brevíssimo. Mas, de verdade, não sabia distrair-se de si mesma e talvez já fosse mesmo tarde demais. No momento em que pôs os olhos nele já não havia retorno. No momento em que o beijou o chão se abriu.  


Deixou-se, então, tragar pela loucura que era uma forma de contágio. Uma velha varíola. Uma tuberculose extemporânea que faz acordar antigas fraquezas e contamina, alvéolo por alvéolo até asfixiar. 


Ou não. Era o contrário. Era a chegada da primavera, era a bateria da escola de samba, era a torcida no Maracanã. Era o que arrasta, move, modifica.  A (re)descoberta do próprio corpo, esse mesmo corpo que até ontem apenas era aquele que a levava para lá e para cá e guardava seus pensamentos como se fosse uma catedral. Em troca, o alimentava e o fazia repousar; monitorava seu colesterol, sua glicemia e não havia surpresas. De repente, ele acorda e passa a ter exigências desconhecidas. Pequeno tirano. E estabelece novas regras para o comércio antigo. É preciso também acariciá-lo, excitá-lo e deixá-lo levar-lhe pelas suas veredas infinitas.


Abandonou-se então ao delírio das muitas noites insones. Pintou a sala de vermelho, escreveu poemas pornográficos. Correu nua pela casa com as cortinas abertas. Dançou a música que vazou do apartamento vizinho. Sorveu os fluídos que emanavam daquele outro corpo. Às vezes ácidos, às vezes doces. O cheiro que impregnava tudo. O suor salgado, as lágrimas amargas que vinham de algum lugar. A voz acima do bom tom que preenchia todos os espaços e entrava nas fendas da memória apagando outras lembranças. 


E ele, a esfinge a ser decifrada. 


Tentou. Negligenciou o trabalho novo, escrevendo-lhe cartas amorosas em horário comercial. Ensaiou discursos que nunca faria e repassou-os mentalmente horas seguidas. Parou de comer. Comeu demais. Tudo pelo topo. O carrossel, a montanha russa. A intoxicação da adrenalina, a falta da endorfina. O corpo debilitado, a vontade alquebrada. Decifra-me ou te devoro.


E por fim, um dia, terminou como tudo termina. Sem adeus, sem morte. Apenas a ruptura. Apenas o fim do turbilhão. E a paz chegando na forma usual, o tédio do ordinário, do arroz e feijão, da vida regrada, da cabeça no lugar e o coração vazio.  


Quanto tempo durou o transe? Cinco anos, entre idas e vindas. Não fora tão breve e valeu por uma vida. 


Anos depois, as paredes restavam vermelhas. 


Vilma Aguiar (texto)


Mónica Defreitas (imagem)


Publicado no www.obaile.net



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