No Além

 





Quando deu por si estava morta. Não que soubesse imediatamente, mas achou tudo meio estranho e uma alma caridosa que passava por ali, vendo sua cara de perdida, lhe avisou. Aqui é o Além, minha filha. Vais ficar por aqui um tempo, fazendo estágio. Depois veremos para onde você vai.

Ela mal conteve seu espanto. Fazia dois ou três dias que ainda estava trabalhando na Gávea, na casa da patroa que conhecia há vinte anos. A casa que cuidava como se fosse sua. Sabia de cada rachadura nova, cada mancha que teimava aparecer na pintura já meio antiga. Conhecia-a melhor que os próprios moradores, tinha certeza.

Há dois dias estava ali ainda, meio ofegante, mas teimando em ser firme. A patroa tinha voltado de viagem na semana anterior, as coisas ainda não estavam bem arrumadas como deveriam estar e por isso, disfarçou o mal-estar quanto pôde. Já bastava a patroa adoentada. Deve ser o ar condicionado do avião, se lhe disse. Sabe como é, muitas horas. Sabia não. Esse negócio de Europa e avião não tinha ideia de nada. Nunca tinha saído da comunidade onde nascera e morava há pouco mais de sessenta anos. Ainda fez um chá e levou para ela, prestativa. Depois foi para o quintal, lavar as calçadas. Daí teve um acesso de tosse e não se lembrava de mais nada. Sua última lembrança era olhar para o canteiro e pensar que o jardineiro tinha cortado demais o buxinho, seu predileto no jardim. Aquelas bolinhas verdes tão perfeitas. Até achava pecado achar o buxinho podado mais bonito que as folhagens que preenchiam os cantos do terreno. Coisa de homem mais bonita que formas de Deus, onde já se viu. Pois é. Mas era assim. Amava a ordem e o buxinho dilacerado lhe atingiu o peito.

Então, agora estava no Além. Que coisa. Imaginou que veria os netos crescerem. Esperou por isso. Contava os dias para a aposentadoria. Iria visitar finalmente os parentes em Teófilo Otoni. Os filhos da irmã que ficaram por lá depois que ela morreu. A irmã tinha partido uns anos antes, bem moça. Atropelada, um choque. Ficou tão amassada que foi de caixão fechado. Será que ela estaria por aqui? Bom, se era um estágio, capaz que não. Tinha tempo. Ou será que o tempo aqui era diferente? Bom, podia depois procurar, assuntar com os outros que estavam por ali. Mas era injusto isso de morrer sem ver os netos crescerem. Será que podia reclamar com alguém? Não que fosse reclamona. Era não. Muita humildade, tinha aprendido com a mãe. Cada um tem o que lhe cabe, esta dizia. E depois de que adianta? Pobre só se fode. Mas isso era coisa do filho revoltado. Teria ficado vermelha de vergonha pela lembrança se ainda tivesse sangue. Onde já se viu pensar em fodeção no Além? Vai que isso lhe aumentasse o estágio, ou, pior, lhe mandasse direto pro inferno?

Mas o inferno merecia não, pensou. Deus é testemunha que ela ia todo domingo nos cultos e sempre pagou o dízimo direitinho. Era suado, mas pagava. Bom, teve aquela vez que a filha ia se formar e pediu um vestido novo. Será que Deus era assim tão sovina? Certeza que não. Era misericordioso, todo mundo sabia. Mas podia ser que a punição não fosse por sovinice, mas por disciplina. É importante manter o povo na linha. Isso ela sabia bem. O que não sabia era o que devia fazer no tal estágio. Melhor perguntar.

Virge santa, minha filha, aqui é só pra você largar do outro plano, ficar mais leve, sabe? Resolver as pinimbas, desafogar as mágoas. Ver o quanto consegue deixar de bagagem. É uma chance a mais pros que morrem assim de repente. Porque pensa bem. Tem aqueles que ficam doentes um tempão e podem se arrepender de todos os maus feitos, podem se despedir de todo mundo; e outros que vão assim, de supetão. Estão vivinhos da silva e, de repente, acordam mortos. É justo isso não. Então, teve aí uma comissão noutros tempos que reivindicou e Deus concordou. Tá certo, todos são seus filhos. Daí criou aqui o estágio. Pra todos terem os mesmos direitos. Despedida de verdade não vai ter, porque você pode descer e ir lá falar com os que deixou, mas eles não vão poder te ouvir. Então fica prejudicado. Mas tem uma vantagem para compensar. Você já sabe que morreu mesmo. Mortinha, mortinha. Então, fica mais fácil perdoar as ofensas.

A explicação era boa. Mas ela ficou mais atordoada. Nunca tinha pensado em comissão de reivindicação para as coisas do Além. O pastor sempre dizia que isso era coisa do Djanho. Sindicalista não vai pro céu não, assegurava. Mas pensando bem, fazia sentido. Os homens são muito ardilosos, dão nó em pingo d´água. Como é que Deus ia pensar em tudo? Sem condições. É bom ir ajustando as coisas. E ficou feliz por saber que o Altíssimo era sensível a argumentos, porque ela já estava pensando em ter uma prosa com algum intermediário e pedir que a mandassem de volta. Porque, né, deve ter sido algum engano. Certeza que não era sua hora.

Daí se deu conta de que sabia de coisas que não tinha como saber. Sabia que fora a primeira a morrer de uma peste nova no país. Na vida nunca foi primeira em nada. Nadica de nada. Muita sacanagem ser a primeira justo na morte e logo de uma fila imensa. Sabia que a peste levaria milhares para o Além e que o lugar em breve estaria cheio de gente como ela. Mas como, se ainda não tinha acontecido? Só sabia que sabia. E aí, ser a primeira era em tudo uma desvantagem. Iam se lembrar mais de sua morte que de sua vida. E daqui a pouco o Além estaria tão congestionado que ia parecer ônibus às seis da tarde para Duque de Caxias. Nem na morte merecia um pouco de calma? Eita, disse pra si mesma. Esse negócio de pedir o que é direito e justo deve ser contagioso. Mais um pouco e virava uma agitadora. O que sabia ela do que era bom e do que era justo? Melhor deixar nas mãos do Senhor.

Melhor também pensar nos filhos que tinham ficado sozinhos. Crianças não eram. Andavam meio perdidos na vida, mas já eram adultos. E, sem se dar conta, estava lá com eles. E pior, vendo seu próprio caixão. Sabia que estava lá, mesmo que não pudesse ver. Caixão lacrado. Credo, deve ser sina de família, pensou. Já não bastava a irmã? Nunca imaginou que esse também fosse seu destino. Logo ela que gostava de flores brancas e já tinha se visto com o rosto rodeado por elas. Num sonho. Aqui, nada. Sem flores. A bem da verdade, estava praticamente pelada. Apenas aquela camisola indecente do hospital. Que vergonha. Seu corpo tinha saído de lá embrulhado num saco de lixo. E foi direto pro caixão. Pensou que lá no Além essas indignidades bem que podiam servir pra abater algum pecado, porque poxa, não merecia isso. Pare de revolta, pensou de si para si. Descobrir-se comunista depois de morta era tipo nada a ver.

Os filhos pareciam mais perdidos que o normal. Mas sem muito drama. Pena. No fundo gostaria de ver rios de lágrimas. Seriam as lágrimas a medida do amor? Em seguida, no entanto, viu essas lágrimas. Se deu conta de que elas viriam nos próximos dias. É que ainda não caiu a ficha para eles, percebeu. Vai chegar. Por um momento divertiu-se com essa capacidade premonitória. Depois pensou em sua atual inutilidade.

Se ela tivesse sabido de sua morte e as razões dela antes, teria ido para Teófilo Otoni no natal e deixado a patroa na mão. Porque no final das contas, para que serviu? Ela deixou a patroa na mão do mesmo jeito. Mas também seus filhos e sobrinhos. Se tivesse podido adivinhar tudo isso, não teria mais botado os pés naquela casa. Bye, bye Gávea. Hello, Minas Gerais. Sua filha sempre dizia isso. Bye, bye Baixada Fluminense, hello Zona Sul. Isso quando começou a namorar aquele playboyzinho. Mas que nada. Logo ele é que estava dizendo bye, bye pra ela. Cansou de falar para a menina. Essa coisa de rico casar-se com favelado só acontece em novela. Enxugou muitas lágrimas naqueles dias.

Era tanta coisa que queria ter posto na cabeça dos filhos. Conseguiu tão pouco. E agora ia pra sei lá onde e eles iam ficar por conta própria. Bom, ela tinha perdido a mãe ainda menina. E tinha se saído bem. Fora uma mulher honesta, boa mãe e chefe de família. Pelo menos era o que os vizinhos estavam dizendo, e isso achou bom. Teria de confiar nos filhos se quisesse abandonar parte da bagagem, como lhe disseram. Será que tem um tempo certo para fazer isso, largar as coisas? Será que pode ficar vindo aqui espiar como as coisas estão? Por que não via os netos se conseguia ver o futuro? Será que seu conhecimento era limitado a certos assuntos? Ou será que era curto no tempo? Saberia de algumas coisas que iam ocorrer nos próximos meses, mas não nos próximos anos? Tantas perguntas sem resposta. Ou seja, ver o futuro assim não adiantou grande coisa.

No momento seguinte, já estava no Além de novo. Sentiu quase uma vertigem com essa coisa de estar lá e aqui num instante. Lá morta num caixão fechado. Aqui estagiária, quem diria. Deus é menos sério do que tinha pensado. Ou pelo menos essa organização das coisas do Reino. Deu um sorrisinho para si mesma. Talvez o melhor seria fazer o que tinha feito a vida inteira. Resignar-se. Ninguém esperava nada diferente dela. Sua vida e sua morte. Tudo quase previsível. Pessoas como ela não envelhecem, pensou. Morrem cedo. Boba tinha sido de pensar o contrário.

E, assim, de repente, sentiu-se leve. Era isso. A janela fechou e ela percebeu que estava pronta para seguir seu caminho.

Originalmente publicado em www.obaile.net




Mónica Defreitas e Nelson Smythe Jr. (imagem)


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