O novo romance político de Cristovão Tezza
(contém spoiler)
Lançado recentemente, A tensão
superficial do tempo do escritor Cristovão Tezza mergulha na banalidade da vida
de Cândido, num momento de impasse deste diante de uma desilusão amorosa. A
personagem principal é um professor de química que é também especialista em baixar
clandestinamente filmes na internet.
Em clima claustrofóbico, uma vez
que o narrador conta tudo apenas sob a perspectiva de Cândido, vemos lentamente
a história se constituir. Enquanto rememora cada momento do caminho que o levou
a conhecer e se apaixonar por Antônia, a esposa de um procurador federal de
Curitiba, a narrativa distribui fragmentos aparentemente aleatórios sobre sua
vida, centrada na relação de Cândido com sua mãe adotiva, no casamento
fracassado com Hélia e no cotidiano da sala de professores do cursinho de elite
no qual é professor e sócio.
Tezza mostra no romance sua
maturidade como escritor. Com grande virtuosismo narrativo em que diferentes
tempos, espaços e personagens se misturam na consciência tortuosa da personagem,
ele insere sua trama na polaridade política que atravessa as relações sociais no
Brasil contemporâneo; neste em que as conversas descambam invariavelmente para
a política e as expectativas sobre o governo Bolsonaro.
O romance desenha um painel superficial
sobre a realidade social e política brasileira a partir de personagens rasos e
despidos de carisma. Trata-se de um trabalho ambicioso que pretende, de um
lado, manter o interesse do leitor pelo domínio exímio da técnica e, de outro, apresentar
uma certa leitura do Brasil atual.
Superficialmente trata-se de um
romance sobre uma personagem obsessiva que volta sempre para seus campos, o domínio
da química e de sua capacidade de ensiná-la a seus alunos, e o das técnicas da
pirataria ciber. O romance descreve minuciosamente como baixar filmes pelo
Torrent, assim como salpica a narrativa de leis da química. Essas são as
identidades de Cândido. Ele parece se interessar apenas por isso e, em outro
nível, por sua mãe, sua ex-mulher e agora por sua nova paixão. Nem por cinema Candido
parece ter interesse, apesar de ter um acervo gigantesco de filmes pirateados.
Assim como nunca participa ativamente das discussões presenciadas por ele. Não
sabemos sua posição política.
O romance é longo e muitas vezes
se arrasta nas interrupções sem fim do fluxo do enredo. Levamos mais de cem
páginas para saber que o drama atual que o leva a tal desespero a ponto de não
voltar para casa por três dias, e apenas vagar pela cidade, dormindo na rua e
finalmente sentar-se num parque público que é onde o narrador captura sua
consciência, é em razão do rompimento com Antônia; e apenas no final do romance
descobrimos que o que parecia ser o drama de uma grande história de amor é
apenas um pé na bunda que o protagonista levou depois de três tardes num motel
com a esposa do procurador que ele conhecera há menos de duas semanas.
Entretanto, se nos distanciamos
da irritação que o romance pode provocar em alguns momentos, pelo insípido e
obsessivo, o que parece superficial e meramente banal e, portanto, um tropeço
de Tezza, pode ser uma necessidade num país hiperbolicamente superficial em que
tudo encontra-se realmente estagnado na tensão do futuro impossível.
Tezza se situa no momento
presente, com personagens que encontramos nas esquinas da “República de
Curitiba”. Mas como abordar esse país tão difícil de ser apreendido? Como
compreender esse tempo profundamente complexo se estamos no meio do olho do furacão?
Como fazer um romance político agora sem levantar (muitas) bandeiras?
Tezza opta pelo painel
esquemático, pelas opiniões políticas catadas aleatoriamente na memória inquieta
de Cândido. Para isso, ele reconstrói diligentemente as conversas recorrentes entre
professores de esquerda e Jussara, a professora bolsonarista, que teima em
fazer o contraponto. Ou coloca o choque diante do desgoverno Bolsonaro na boca
de personagens que se encontram num esquenta na casa de um procurador alcoólatra
que está prestes a assumir um cargo em Brasília. Um procurador da Lava Jato
indo talvez trabalhar com Moro quando a gestão deste já era pura ruína. Em
todas essas ocasiões, a opinião quase unânime é a de que o país elegeu um
maníaco que está destruindo o país e se espera sua derrocada, mais cedo ou mais
tarde. O que as pessoas dizem são basicamente os clichês políticos, é o que eu
e você diríamos sobre o governo Bolsonaro.
Então, o que lemos ali não é uma
grande interpretação sobre o país. Não há isso, apesar de ser, no fundo, sobre
isso, ou seja, como podemos compreender este momento histórico. Ou pelo menos
registrá-lo. Meu ponto é que a alegoria está, paradoxalmente, aí, na
superficialidade, no insípido. Estamos tão catatônicos quanto Cândido sentado
no banco do Passeio Público, olhando ora água parada de um parque decadente ora
temendo a prostituta que hesita em lhe oferecer seus serviços.
Tudo o que aconteceu no país nos
últimos anos é tão absurdo mas, ao mesmo tempo, tão previsível que a nós, os
contemporâneos, o que nos resta é vociferar contra um governo e uma classe
política que nos arrasta para o abismo. Mas é tudo o que fazemos. Discursos
tolos, piadas bobas, como os das personagens de Tezza. Tudo o que podemos dizer
sobre o país é, ao mesmo tempo, evidente, banal e inútil. Tudo se passa como se
fosse impossível haver um real drama aqui. Nada é realmente profundo e trágico.
Ficamos sempre na superfície das coisas. Assim como Cândido não enfrenta seus
demônios, como os que o levaram a cravar um corte no próprio rosto quanto era
criança.
As cento e cinquenta mil mortes pela
COVID-19 e a nenhuma comoção, nenhuma reação, apenas o espetáculo de nossa
indiferença coletiva, é mais uma ilustração disso e demostra que Tezza acertou
em cheio em seu livro longo, chato e também brilhante. Ele fala de nós, que nos
iludimos com esperanças vãs, com saídas fáceis e nos recusamos a enfrentar o
espelho de nossa monstruosidade como nação.
Assim como Cândido, um homem
patético e uma personagem patética, nós também esperamos que alguém nos resgate
de nosso destino de nação incompleta, adolescente aos quarenta, e nos deixamos embalar
por qualquer amor ilusório. Mas nem aqui permanecemos, fechadas as cortinas,
esperamos pateticamente que o governo Bolsonaro caia e que nossos problemas se
resolvam rapidamente e de forma indolor.
Mas se isso também não rolar, o
drama não vai durar mais que três dias, passamos no shopping, lavamos o rosto e
esperamos que uma Beatriz qualquer nos acene e o ciclo recomece.
Vilma Aguiar é socióloga e
feminista. Doutora em Ciências Sociais (UNICAMP). É idealizadora da Escola da
Política, do site www.pandemicas.com.br e do podcast Mulheres Públicas. Escreve
o Livro da Quarentena que pode ser encontrado em seu Instagram @vilma.agui
Comentários
Postar um comentário