A sombra do golpe como método de governo

Os flertes de Bolsonaro com uma ideia de golpe é antiga. Ele nunca teve nenhum escrúpulo de defender abertamente a ditadura de 1964. Não o apoio circunstanciado daqueles saudosos que imaginam que se vivia melhor no império quimérico da lei e da ordem. Não como o efeito colateral de uma necessidade histórica de conter a “ameaça comunista”, como foi o caso de muitos dos generais do Exército. Ele sempre esteve além disso.

Bolsonaro é visceralmente golpista; um regime de exceção o delicia. Durante sua longa carreira como parlamentar,  defendeu orgulhosamente o lado podre do regime, a tortura e os torturadores. Queria que tivesse havido mais assassinatos. Sua convivência com o pessoal dos porões demonstra afinidade afetiva. Suas relações com a milícia do Rio são mais profundas que um esquema que lhe permitiu acumular eleições (as suas e as dos filhos) e poder e patrimônio. São seus amigos, os camaradas que frequentam sua casa, seus vizinhos, seus testas de ferro. Seus sócios, aqueles nos quais confia. 
Como candidato nunca dissimulou nada disso. Tanto porque já sabia que a “polêmica” sempre o beneficiou quanto porque viu que a janela de oportunidade que se abriu com a ascensão de um antipetismo tão exacerbado quanto irracional, levaria uma parcela imensa da população a relevar seus traços mais grotescos. Não apenas relevar. Esses viraram mesmo a fonte de seu carisma. Passou a ser conhecido com o autêntico, o contundente, o gente como a gente. 
Uma vez presidente, a principal preocupação de Bolsonaro é com a manutenção do seu poder. Seu legado é a duração. Seus filhos arrumados na vida, em posições que os tornem intocáveis. Para assegurar-se disso, ele precisa garantir o avanço do conservadorismo, das igrejas e das milícias. Mas precisa principalmente manter a polarização em níveis tóxicos. Porque apenas num ambiente assim, o que ele faz, aquilo que ele é e sempre foi, pode ser de alguma forma aceitável e mesmo desejável. Seus 30% de aprovação, apesar do navio fazer água por todos os lados,  estão aí para mostrar que ele encontrou um modelo de sucesso.
Durante as eleições, a fórmula para a polarização tinha o PT em um de seus vértices. No governo, outros inimigos seriam necessários, sobretudo num cenário em que boas notícias são uma raridade, o ataque aos direitos uma realidade e o PT uma sombra pálida do que já foi. Que melhor inimigo que os políticos e os partidos, os campeões nacionais da vilania? Que melhor inimigo que o STF que libertou o Lula, criminalizou a homofobia e daqui a pouco pode liberar o aborto? Que melhor posição para se estar que a de defensor do “resgate” do Brasil e da soberania popular, para usar os termos do vídeo infame.
Na campanha presidencial de 2018, o PT dizia que a democracia estaria ameaçada por um governo Bolsonaro. O que Bolsonaro tem dito para sua galera desde que começou seu mandato  é que a democracia é outra coisa que o poder dos políticos e das instituições. Olha que revolucionário!
Assim, o pessoal da camisa amarela descobriu os prazeres de participar de manifestações populares de rua e ainda que o poder é dele, pertence ao povo cristão, de família; não a políticos desqualificados e corruptos. Bolsonaro ter saído de seu próprio partido tem um significado imenso: patriotas, vejam, nenhum presta, nem o meu. Se temos de participar dessa festa pobre chamada democracia, vamos fundar o nosso partido, a nossa Aliança, do zero, apenas com homens direitos e de bem. Enquanto isso, vamos acuar essa canalhada toda. Vamos mostrar nossa força. Fora Congresso, fora STF! Viva o Brasil!
O golpe, ele mesmo,  é inútil. Pelo menos nos próximos anos, enquanto a sucessão estiver ainda distante e a possibilidade de reeleição no horizonte. É certo que há uma disputa pelo orçamento da União e pela pauta no Congresso, mas nada que não possa ser negociado, afinal, na ponta do lápis, ambos, governo e Congresso representam interesses bem convergentes.
Mas se o golpe não vem, sua ameaça constante faz parte do complexo método Bolsonaro de governar. No mínimo, mantém seus aliados e seus detratores bradando por democracia. Construir uma base material para essa ameaça (generais no núcleo duro e policiais amotinados e amotináveis), também.
Diante de tudo isso, eu diria que não é bem a democracia que está em perigo. É antes a República. Esta, coitada, anda cada vez mais avariada. 

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