Fora de casa

 



Viajar serve para muitas coisas. A melhor é colocar uma perspectiva entre você e as suas certezas.


As minhas são poucas, mínimas, raquíticas. Mas, mesmo assim, logo estão sendo nocauteadas por um pulinho ali no agreste.


Um dia, deixando o litoral atrás de mim e duas centenas de quilômetros depois, já no interior do Rio Grande do Norte, fui visitar um engenho de cana-de-açúcar. Paisagem seca, verde escasso. Numa estradinha em que se podia ver ao longe vacas magras e cabras prenhas, um engenho raiz. Um galpão acanhado de madeira velha e uma fornalha capaz de derreter metal e vidro. Ao lado do grande tacho, uma mulher ainda moça, mas já desdentada, fazia um doce movimento em ésse para que a rapadura fosse lisa. A rapadura perfeita ao custo de cozinhar também os músculos e o sangue e os dentes da mulher. Revi 150 anos de ventre livre. Uma tataravó devia embalar a mesma cana até que esta se tornasse um líquido quase tão escuro quanto a pele dela.


O Brasil é pura repetição de crueldade.

Com pitadas de insólito.


No caminho de volta, quando a pessoa acha que cumpriu sua cota de lição de país daquele dia, uma cena bizarra vem te mostrar o quanto você é principiante. Na rodovia de mão dupla, um caminhão rebocador vinha na direção contrária à nossa, em ré. Fechei os olhos e olhei de novo. Não era engano. Não se via a cabine, mas a carroceria. Uma frase no parachoque dizendo que jesus cristo é meu pastor e nada me faltará. Pra ele talvez não, mas pra mim, a lógica banal das coisas. A mão inglesa me pareceu uma bobagem; o mundo está de cabeça para baixo, da direita para a esquerda, de trás para frente. Ele puxava o caminhão-colega ladeira acima, focinho com focinho, um quase beijo suspenso, enquanto nós descíamos, ladeira abaixo. O breve encontro quando a soma das velocidades acelera o tempo. A novidade do mundo invertido onde se anda para a frente em marcha ré, ali, era coisa banal. Eu era a única espantada. Eles sempre fazem isso, me assegurou o motorista com naturalidade. O motor da ré é mais potente. Ah, tá, claro, como todos não pensamos nisso antes?


Me pareceu então uma boa metáfora. Dirigir pelo retrovisor, com o futuro atrás de si. Se se pode puxar um caminhão em pleno sertão em marcha ré, o que não se poderia empurrar com a barriga neste paisão esquecido por deus?


A rapadura nossa de cada dia, nos dai hoje.


O Brasil é isso. Trezentos e tantos anos de alguém de pele negra cozinhando sua carne para adoçar a vida de outros enquanto toda a desgraça segue sendo empurrada ladeira acima. Em marcha ré, que seja.


Ou não?


Sei lá, perdi minhas certezas no caminho de volta ao litoral. Ali onde o mar mora, é melhor sempre desconfiar.

originalmente publicado em www.obaile.net


Mónica Defreitas e Nelson Smythe Jr. (imagem)


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