No coração do mundo e do Brasil
Em 2000, Sérgio
Bianchi lançou Cronicamente inviável. Era uma hipérbole do pior da
sociedade brasileira. Ali via-se as relações violentas de classe,
de raça, de gênero; o cinismo e a hipocrisia da classe média; a
destruição ambiental; a corrosão moral de todos os personagens; a
indústria cultural como mediadora da repressão política e social;
o arrivismo dos pobres. Não há clemência para ninguém. Não chega
a ser um grande filme, mas é um ícone cinematográfico no registro
da miséria brasileira.
Outro filme
importante que retrata o pior do Brasil é “Baixio das bestas” de
2007. O filme de Cláudio Assis é também avassalador ao expor a
violência como eixo principal das relações sociais. No caso, o
filme foca principalmente na questão da violência sexual contra
meninas e mulheres, as relações de subserviência entre a elite e
os pobres, o embrutecimento de todos. Desde a paisagem até as
pessoas, tudo é bestializado. Quando a tela é tomada pelo vermelho
do fogo nos canaviais, o expectador já está convencido de que tudo
deve arder. Não há saída possível. Uma das frases de efeito do
Cronicamente inviável poderia ser aplicada a este Brasil: “ a
destruição da dignidade pode virar característica cultural”.
O recém lançado
“No coração do mundo”, de Gabriel Martins e Maurilio Martins,
se inscreve nesta tradição. O filme, gravado em Contagem, cidade da
região metropolitana de Belo Horizonte, constrói um painel das
personagens das periferias brasileiras. Aqui, a periferia e a pobreza
não são estilizadas e gourmetizadas, vividas por atores e atrizes
da zona sul carioca como nas produções Globo Filmes. Aqui, um
Brasil real entra em cena. Neste, os homens e mulheres são
majoritariamente negros e pardos, estão acima do peso, têm a fala e
o jeito manso de Minas Gerais. Os bairros distantes são áridos, são
secos, são feios. As personagens são cruas e nesta crueza vemos o
mosaico da cultura brasileira que elegeu Bolsonaro.
Ali vemos sua religiosidade, sua ética do trabalho que inclui a clara separação entre os trabalhadores e os vagabundos que tangenciam ou se enveredam no crime, as relações entre a classe média baixa e seus empregados, o “empreendedorismo” da senhora que produz e vende produtos de limpeza e da cabeleireira que quer ser motorista de Uber porque seu nome é trabalho e seu sobrenome é dinheiro; vemos a humilhação cotidiana a que estão submetidos. Vemos a falta de horizontes pessoais dos que estão submersos no mundo do trabalho sem significado, como a cobradora de ônibus que fala sobre ir e voltar infinitamente dentro do carro enquanto a vida de verdade está acontecendo lá fora. Que cuida do avô doente enquanto pensa que o mundo é maior que Laguna, o bairro distante. Vemos ainda a justiça sendo feita com as próprias mãos pela mãe do menino morto por engano, porque o assassino vacilou. Vemos as intersecções entre os aspirantes a bandidos e a elite, ela mesma, bandida. É o Brasil da rap e do sertanejo, da cultura pop e da brutalidade. O painel é ambicioso e talvez aí resida uma das fraquezas do filme, uma vez que parece querer fazer o check-list das mazelas e de seus tipos ideias. Soa um pouco too much. Mas o conjunto é verdadeiro e poderoso.
Ali vemos sua religiosidade, sua ética do trabalho que inclui a clara separação entre os trabalhadores e os vagabundos que tangenciam ou se enveredam no crime, as relações entre a classe média baixa e seus empregados, o “empreendedorismo” da senhora que produz e vende produtos de limpeza e da cabeleireira que quer ser motorista de Uber porque seu nome é trabalho e seu sobrenome é dinheiro; vemos a humilhação cotidiana a que estão submetidos. Vemos a falta de horizontes pessoais dos que estão submersos no mundo do trabalho sem significado, como a cobradora de ônibus que fala sobre ir e voltar infinitamente dentro do carro enquanto a vida de verdade está acontecendo lá fora. Que cuida do avô doente enquanto pensa que o mundo é maior que Laguna, o bairro distante. Vemos ainda a justiça sendo feita com as próprias mãos pela mãe do menino morto por engano, porque o assassino vacilou. Vemos as intersecções entre os aspirantes a bandidos e a elite, ela mesma, bandida. É o Brasil da rap e do sertanejo, da cultura pop e da brutalidade. O painel é ambicioso e talvez aí resida uma das fraquezas do filme, uma vez que parece querer fazer o check-list das mazelas e de seus tipos ideias. Soa um pouco too much. Mas o conjunto é verdadeiro e poderoso.
Nesta tríade de
filmes tão diversos, vemos como o combalido cinema brasileiro tem
conseguido mostrar um país renitentemente incivilizado, incapaz de
incluir seus cidadãos, mas produtor caudaloso de meios de
legitimação de sua escandalosa desigualdade, de seu individualismo
exacerbado, de sua violência estrutural. Em No coração do mundo,
as personagens querem que esta máquina de moer carne humana pare. O
expectador duvida. Este país parece ter passado, em 20 anos, de
cronicamente inviável para abissalmente inviável. As razões estão
todas ali, expostas para quem quiser ver.
Contudo, ao vê-las mostradas tão clara e habilmente por jovens que saíram deste
mesmo lugar, do meio do mesmo caldo que cultura que produz a barbárie, nos dá uma réstia de esperança. O que, nos tempos atuais, não é
pouco.
Adorei a abordagem dos filmes e o fio de narrativa entre eles!!! Não assisti ainda, mas já na minha lista!
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